Seek Bromance | Teatro do Bairro Alto
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22 – 23 fevereiro 2023

Artes Performativas

quarta e quinta 19h

Fora de Portas – Cinema São Jorge

Preço único 7 eur.
Duração: 2h10 + intervalo de 15 min. + 90 min. 
Maiores de 18 
Em inglês 

ACESSIBILIDADE
Espetáculo com legendagem em português

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Seek Bromance, a mais recente obra de Samira Elagoz (apresentou Cock, Cock… Who’s There? no TBA/Lux Frágil, em dezembro de 2020) é uma performance cinematográfica de 4 horas que nos mostra uma relação transformadora entre duas pessoas transmasculinas que se conheceram no início da pandemia, ambas com uma história de terem desempenhado personagens extremamente femininas nas suas vidas, mas com posições muito diferentes em relação ao que pode ser a masculinidade. As imagens que Samira Elagoz capta, com Cade Moga, documentam não só a sua relação amorosa desde o momento em que se encontraram até à sua rutura final, mas também o longo adeus de Elagoz à sua identidade de femme. Apenas com um carro, algum dinheiro e uma reserva de testosterona, expõem a dinâmica constituinte da masculinidade e da feminilidade. 

Propus-me editar este trabalho enquanto me debatia com o meu género. Uma obra trans em que não se trate de educar pessoas cis, de justificar a nossa existência nem de sermos exemplos positivos brilhantes, mas procurando apresentar uma história real com protagonistas trans que são pessoas complexas e inquietas, progressistas e admiráveis, problemáticas e em quem nos podemos rever. E que são rebeldes, amantes e criadoras. 

 

Samira Elagoz 

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Enquanto os seus trabalhos anteriores exploraram os homens cisgénero e a masculinidade nas suas diferentes formas a partir de uma posição externa, quando ainda se identificava como mulher, esta última criação Seek Bromance (vencedora do Leão de Prata na Bienal de Veneza de 2022) muda o seu ponto de vista à medida que SAMIRA ELAGOZ atravessa a sua própria transição. 

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Por ocasião da estreia alemã de Seek Bromance, a dramaturga Sara Abbasi fala com o cineasta e artista performativo Samira Elagoz sobre identidade sexual, imagens de masculinidade e a sensação de olhar para o seu próprio passado feminino enquanto artista transmasculino e reencontrá-lo em palco.

 

Sara Abbasi Em agosto, vai novamente apresentar Cock, Cock… Who’s There? [CCWT] após um interregno de mais de ano e meio. Em 2016, identificava-se como feminina. Agora, identifica-se como pessoa transmasculina, que é o tema do seu novo trabalho, Seek Bromance. Vai interpretar ambas as obras em duas noites consecutivas. Qual é a sensação de encontrar o seu eu passado?

 

Samira Elagoz Cock, Cock… Who’s There? assemelha-se muito a uma ode ou a uma celebração de ser mulher. Esse espetáculo mostra que não mudaria nada no que toca ao tempo em que fui mulher. Muitas pessoas julgam que fiz a transição por não ser feliz enquanto mulher, mas isso não é verdade. Tive uma relação longa, complexa e empenhada com a condição feminina, explorei-a plenamente, mas é simplesmente algo que já não sou. Nesse sentido, Cock, Cock… Who’s There? constitui um canto de cisne em relação a ser mulher e prezo-o muito.

No entanto, tenho cada vez mais dúvidas de alguma vez ter sido mulher. Reconheço que estava apenas ocupado a desempenhar bem o papel, queria ser mestre nisso. Identifico a condição feminina como experiência, mas não enquanto identidade. Quando descarto os artifícios, parece quase um sistema programado para interpretar a feminilidade, atuando dentro dos parâmetros, dos limites, dos requisitos, onde as minhas ações se revelam reacionárias ou mesmo inertes. Um papel não tanto adotado, antes simplesmente colado. Mas a verdade é que a minha condição feminina definiu quem eu sou hoje. De modo que, apesar de não querer continuar a sê-lo, faz parte do meu CV.

Só interpretei Cock, Cock… Who’s There? uma vez após começar a transição e tive a forte sensação de ser duas pessoas em palco. Pela primeira vez em quatro anos de digressão, chorei depois do espetáculo. Não de tristeza, mas de admiração pelo que fizera, por quem fora. Continuo a achar Cock, Cock… Who’s There? bastante épico, verdadeiramente histórico. E demonstra uma ferocidade que nenhum ser masculino alguma vez pode ter. É algo que só um ser feminino seria capaz de fazer. E o otimismo que vi em Cock, Cock… Who’s There?, aquela vontade de ainda tentar, a recusa da derrota, foi um sinal de esperança. Fez-me sentir muito orgulhoso da imagem feminina que criei.

 

SA Em Seek Bromance, vemos o momento da sua primeira injeção de testosterona e temos a impressão de participar no início de uma história muito biográfica, mas claro que essa cena não foi o começo do seu processo de transição. Diria que esse processo teve início logo quando trabalhou em CCWT? Do ponto de vista atual, onde encontra linhas de contacto entre CCWT e Seek Bromance?

 

SE Fazer uma transição é como editar: não se sabe imediatamente o que se está a construir. Só quando se olha para trás, com distância, é que surge o padrão de gosto e se consegue ver os passos que se deram. O “porquê” é um luxo retrospetivo e não uma condição prévia para a decisão. As pessoas são seres muito assentes em histórias. A narrativa em relação a qualquer provação é: “Fez de mim o que sou hoje”. Mas muitas das nossas intenções podem ser indetetáveis fora do nosso círculo. Fabricamos histórias ou imagens ou gestos que escapam aos limites do que nos foi dado. Inventando à medida que progredimos, tornando-nos artistas da própria vida.

“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, escreveu Simone de Beauvoir. “É a civilização como um todo que determina tal criatura.” Concluo que os homens estão igualmente reféns de normas de género e são eles próprios vítimas da busca malfadada por certezas masculinas míticas. Ultimamente, tenho vindo a pensar se alguma vez faria uma ode à masculinidade. Mas, se Cock, Cock… Who’s There? celebrava a condição feminina e fazia questão de não se desculpar por isso, uma tal abordagem é inconcebível no caso da masculinidade, por estar pejada de armadilhas tóxicas. Independentemente da esperança que se tem de se ser um homem melhor, é inevitável cair nalguma. Se Seek Bromance é em parte uma análise do tipo de homem que todos queríamos ser, acabamos por nos aperceber do falhanço inerente na procura da masculinidade. Não apenas por os traços masculinos “tradicionais” estarem ligados à agressão, à misoginia, etc. ou por a masculinidade carecer de um bom modelo a seguir. Mas por a sociedade me mostrar que a masculinidade é um ideal irrealizável, uma alucinação de comando e domínio, e uma ilusão de superioridade. Apercebi-me de que toda a gente partilha esta experiência, o medo absurdo mas debilitante que se tem de não ser homem que chegue, ou feminino que chegue ou queer que chegue, essa vulnerabilidade insegura. E a ideia de poder masculino permanecerá ilusória para todos os homens, quer se tenha sido designado à nascença quer não.

 

SA Em Seek Bromance, seguimos a história de uma relação entre si e o seu parceiro cinematográfico e colaborador Cade Moga, artista brasileiro que se identifica como pessoa transmasculina no início da rodagem e agora se identifica como não binário, usando o pronome “eles”. “Que perceção tem dos homens?”, pergunta a Cade a certa altura. Como responderia a essa questão?

 

SE Sou cético em relação à ideia de personagens tipo. Mas há um modelo derrotista de ser homem, uma crise de masculinidade aparentemente irresolúvel. Passei dez anos da minha vida a filmar homens de forma intermitente. E sinto afeto por eles, dão-me esperança e divertem-me. Senti-me muitas vezes uma espécie de confidente para os homens.

Porque, quando uma mulher partilha alguma coisa muito pessoal, sabes que provavelmente também o partilhou com outros amigos, mas, quando um homem se abre contigo, é frequente estar a ouvir-se a dizer aquelas palavras pela primeira vez. Isso sempre foi muito precioso para mim – ser a testemunha de coisas que surgem no mundo pela primeira vez. Fez-me ver que os homens não têm nem o espaço nem a linguagem para essas coisas.

Quando falei com uma amiga minha sobre a minha transição pela primeira vez, ela disse: “Não é um bocado marado tornares-te homem agora? Não é revolucionário?”. Retorqui que te podes tornar no homem que gostarias que existisse, ao que ela disse: “Sim, mas não queres viver a tua vida como um exemplo. Não dediques a tua existência a ser um modelo a seguir.”

No entanto, vejo-me mais como uma entidade transmasculina do que como um homem. E mesmo assumir essa forma de masculinidade acarreta muita responsabilidade. Os homens cis costumam ser maus exemplos de masculinidade, parecem um tanto perdidos ou ridículos e relutantes em evoluir. De modo que, enquanto pessoa transmasculina, sinto que carrego o peso de ser melhor enquanto a crise deles aguarda a sua revolução. Quer dizer, o que é masculinidade credível em 2022? Penso que os homens se encontram-se numa encruzilhada. Não há certamente nenhum bom modelo a seguir de masculinidade. Ainda assim, já não acredito em tudo aquilo em que acreditava acerca dos homens. Comecei decididamente a percebê-los melhor ao tomar testosterona.

Como descobri que as pessoas transmasculinas não são imunes à masculinidade tóxica, é na verdade fácil – atrevo-me a dizer tentador – adotar esse papel, que pode parecer quase caricatural ao fazê-lo. Tenho de esclarecer que a testosterona não torna uma pessoa tóxica, mas a pressão para interpretar uma masculinidade estereotipada pode fazê-lo. Quando se espera que “passem”, o caminho mais direto é interpretar lugares-comuns recorrentes, que são sobretudo demonstrações patéticas e embaraçosas de falsa dominação.

No seu melhor, a transmasculinidade pode perspetivar o futuro da masculinidade. No seu pior, reproduz as suas falhas, repetindo padrões nocivos, numa necessidade equivocada de legitimidade.

Excerto da entrevista da dramaturga Sara Abbasi a Samira Elagoz,

revista Ruhrtriennale, agosto de 2022.

NOTA DO TBA: O TBA está ciente de um conflito na sequência de uma disputa autoral relativamente a esta peça e que Cade Moga não se reconhece na obra de que é coprotagonista. O TBA apresenta a peça com conhecimento da divergência existente.

Direção e conceção 
Samira Elagoz 
Em colaboração com 
Cade Moga 
Protagonistas 
Samira Elagoz e Cade Moga 
Material filmado 
Samira Elagoz e Cade Moga 
Montagem 
Samira Elagoz 
Dramaturgia 
Samira Elagoz 
Consultoria 
Bruno Listopad e Antonia Steffens 
Consultoria extra de montagem 
Otto Rissanen, Jessica Dunn Rovinelli, Tiana Hemlock-Yensen, Valerie Cole, Michael Scerbo e Daniel Donato 

Consultoria de argumento 
Tiana Hemlock-Yensen, Richard Sand e Valerie Cole 
Consultoria durante as filmagens 
Jeanette Groenendaal 
Produção 
SPRING Performing Arts Festival 
Gestão e distribuição 
Something Great 
Coprodução 
Frascati, Kunstenwerkplaats Pianofabriek, Black Box Teater, BIT Teatergarasjen, Finish Cultural Institute for the Benelux e Arsenic – Contemporary Performing Arts Center 
Com o apoio 
Fonds Podiumkunsten, Koneen Säätiö, Prins Bernhard Cultuurfonds e Ammodo