Dito e Feito #22 – Transcrição – the vacuum cleaner – How to Hold the Bug
LAURA LOPES: Este é o Dito e Feito, podcast do Teatro do Bairro Alto, em que falar é uma maneira de fazer e vice-versa. Eu chamo-me Laura Lopes, sou programadora de Artes Performativas do TBA.
Antes de abrir, começámos online e, agora, com o novo confinamento, propomos formatos digitais que dão continuidade à nossa vocação experimental. É o caso deste episódio, que se chama “How to Hold the Bug”, que resulta de um convite feito a the vacuum cleaner, um coletivo britânico de arte e ativismo de uma pessoa só, James Leadbitter. A sua mais recente série de trabalhos tem como foco acontecimentos relacionados com distúrbios mentais e com os serviços de saúde mental. Nestes projetos, tem trabalhado com grupos de jovens, profissionais de saúde e adultos vulneráveis, com o intuito de questionar a forma como a saúde mental é compreendida, tratada e experienciada.
“How to Hold the Bug” nasce de material recolhido para o projeto “Exposure”, uma série de retratos de vídeo que o artista tem desenvolvido com profissionais de saúde do Hospital de Newham, um hospital que se situa na periferia de Londres e que, na primeira vaga da pandemia, foi um dos hospitais com maior taxa de mortalidade per capita do mundo.
Este podcast é em inglês, a transcrição e tradução em português está disponível em teatrodobairroalto.pt.
***
CHARLIE: Ora bem, sou a Charlie, sou médica assistente. Trabalho, atualmente, no Hospital de Homerton, nas Urgências. Mas, por causa disso, e durante a primeira vaga de Covid, estive no Hospital de Newham, no meu primeiro ano de profissão. Estava numa Unidade de Cuidados Intermédios de Covid…
THE VACUUM CLEANER: Muito bem, vamos começar pelos avisos e assim. Esta gravação de áudio é sobre o Covid, os médicos e os hospitais. Haverá referências a mortes de Covid. Isto era o meu telefone, esqueci-me de pô-lo no silêncio. E também por causa da morte e do Covid… e porque nós… Isto está a acontecer em Inglaterra. A razão pela qual muita gente, aqui em Inglaterra, está a morrer de Covid é uma combinação de racismo, de discriminação contra a deficiência ou capacitismo, e também de igualdades subjacentes face à saúde. Portanto, a pobreza e a opressão económica de pessoas marginalizadas. Então… Estas são as coisas que vamos abordar. Se isso vos deixar muito angustiados, talvez seja melhor não ouvirem. Ou preparem-se para isso, se quiserem continuar. Esta é a introdução.
Depois da introdução, temos um trecho musical. Se fosse uma faixa da Beyoncé, das Little Mix, ou até do Fela Kuti, se quisermos… sair do mainstream. Então, esta é a parte que vos vai prender ao podcast.
Devia tirar o som do telefone, não era?
Esta é a parte que vos prende ao podcast, a questão em causa, a advertência…
Temos de interromper e pô-lo no silêncio. Sim, vou pôr o telefone no silêncio. Isto foi pouco profissional da minha parte, não foi?
Então, se isto fosse o “gancho” seria o refrão da “Edge of Seventeen” do Stevie Nicks. O sample é de… quem quer que tenha feito o sample. Agora estão apanhados, tenho a vossa atenção. Depois do trecho musical, quero levar-vos de volta à realidade.
[Edge of Seventeen]
THE VACUUM CLEANER: Esta parte foi divertida. Está na hora de vos partir o coração. Mas, primeiro, esta é a Charlie, que é bestial. Acho que vão gostar dela.
CHARLIE: Tenho esta imagem estranha, logo ao princípio… de mim, como uma médica especialista em medicina de urgências de cabelo grisalho. Talvez tenha um carro misterioso ou um coxear com pinta. E de ter os meus alunos de medicina à volta e estar a falar-lhes da pandemia. E… Porque isto é História, e eu estive lá. E se há coisa de que isto me permitiu ter a certeza é que, ainda que seja um trabalho duro, não me vejo noutra profissão. Tenho de estar aqui. Há tanto sentido naquilo que faço.
Descobri todo um novo valor nisto. E já era muito importante para mim, antes.
Mas, agora, transformei-me por causa disto. Acho que mudámos todos. Acho que é diferente para toda a gente.
Acho que é um diferente que não é mau.
É difícil não ficar uma pessoa dura ao passar por uma coisa destas.
Acho que temos de fazer um grande esforço para não nos tornarmos insensíveis.
THE VACUUM CLEANER: Pois. Senão, deixas de ser boa no teu trabalho. O que precisas de um profissional de saúde é da delicadeza e da abertura…
CHARLIE: Os meus doentes merecem-no.
THE VACUUM CLEANER: Pois.
CHARLIE: Eu mereço-o.
THE VACUUM CLEANER: Sim.
CHARLIE: Não quero ser uma pessoa dura. Estes tempos são duros. Já não sei o que é aceitável.
THE VACUUM CLEANER: A Charlie traz um vestido e um casaco de malha verde. O vestido é estampado. Imagino que seja dos anos 70. Podia ser dos 60, mas vou apostar nos 70. De roda larga, com… não é bem um estampado paisley, mas tem umas coisas floridas, e traz uns brincos bestiais. Devia dizer-vos porque é que ela está no meu estúdio a contar-me estas coisas.
No verão de 2020, convidei trabalhadores da saúde que estivessem a trabalhar, durante a pandemia, na freguesia londrina de Newham, para que viessem conversar comigo ao meu estúdio, conversa que seria filmada. Vieram 47 pessoas de disciplinas muito diversas, dos serviços de urgências às unidades de cuidados intensivos, à pneumologia, à ginecologia e obstetrícia, aos serviços de partos. E também… Gente muito variada. Sentaram-se no estúdio, à minha frente, usámos equipamento de proteção, e eu fiz-lhes umas perguntas. Tudo isso era para um projeto artístico que estou a fazer, chamado “Exposure”. Vieram da freguesia de Newham porque, caso não saibam, Newham é uma zona na parte ocidental de Londres. É onde foram os Jogos Olímpicos em 2012. E é uma das áreas mais pobres do Reino Unido. Também é uma das áreas mais diversas do Reino Unido. Há muitos migrantes e refugiados que se instalaram lá. É tida como a mais jovem… uma das mais jovens populações do Reino Unido, e têm também muito grandes desigualdades relativamente à saúde. Então, como é óbvio e talvez previsível, o Covid atingiu essa comunidade com muita força. Houve uma altura em que… no início de Abril, ou em meados de Abril, em que tiveram mesmo a maior taxa de mortalidade per capita do mundo, o que é arrasador para essa comunidade. Foram atingidos mesmo com muita força.
Então, fiquei mesmo interessado em falar com os profissionais de saúde sobre a experiência deles, e garantir que isso ficava filmado para sempre, porque, imagino que todos saibamos, isto é importante, é triste, é doloroso. E foi assim que a Charlie veio parar ao meu estúdio.
Porque quiseste ser médica?
CHARLIE: Queres a resposta curta ou a comprida?
THE VACUUM CLEANER: A comprida.
CHARLIE: Ora bem…
THE VACUUM CLEANER: Cinco minutos mais tarde.
CHARLIE: …mas as ciências mais duras e, depois, tentar fazer parte do clube dos meninos grandes, e isso não me interessava. Gostava muito do lado filosófico das coisas, mas não queria mais do que três anos disso. Estou sempre a fazer a piada: queria pensar tudo de uma vez, porque não se aguenta muito tempo a divagar sobre se as cores são reais.
THE VACUUM CLEANER: É por isto que gosto da Charlie.
CHARLIE: Se tivesse tido uma epifania destas sobre Deus e teria virado freira. Era uma daquelas coisas que estava decidida a fazer.
THE VACUUM CLEANER: Seja como for, não sou bom na montagem a ponto de condensar a longa história de como ela foi para medicina num bloco limpinho para um podcast, mas digamos apenas que ela foi para medicina e, no momento em que ia estagiar para ser médica especialista, dá-se uma pandemia.
Muito bem, tenho cinco anos. Dizes-me o que é um vírus?
CHARLIE: Disseste que seriam perguntas fáceis. Mentiste!
É um pouco como um meme na Internet. Um meme mesmo foleiro, que não para de fazer cópias, cada vez piores, dele próprio e vai e…
THE VACUUM CLEANER: É a Kim Kardashian.
CHARLIE: Sim, dá cabo da Internet. Tu és a Internet, a Kim Kardashian é o coronavírus.
CHARLIE: Enganaste-me. Esta é a minha contribuição para a geração futura.
Sou a Internet…
THE VACUUM CLEANER: Sou…
Estamos a ter uma boa conversa e a darmo-nos bem. Mas, quando ela começa a falar-me na sua experiência a trabalhar no Hospital de Newham, durante a pandemia, torna-se claro que me quer contar qualquer coisa. E é esta parte da história dela que me interessa. E é assim que começa.
CHARLIE: E nem pareciam ficar pior. Já estavam muito doentes, mas não pareciam estar a piorar. Passavam de doentes a mortos. E minutos, literalmente, ali à tua frente, morriam e pronto.
THE VACUUM CLEANER: Foi essa a experiência mais difícil que tiveste durante a primeira vaga?
CHARLIE: Não.
THE VACUUM CLEANER: Posso perguntar-te sobre isso? Ou preferes não falar nisso?
CHARLIE: Não, tenho de falar sobre isso. Mas vou chorar. Lenços a postos!
CHARLIE: Podemos chorar juntos.
THE VACUUM CLEANER: Queres fazer uma pausa?
CHARLIE: Não.
THE VACUUM CLEANER: Pronto, vamos lá.
CHARLIE: Não, quero falar sobre ela.
THE VACUUM CLEANER: Ele ou ela…
Vou só interromper-te, Charlie. Desculpa. Mas sinto que tenho de explicar aos ouvintes qual é a minha motivação, porque acho que isto… Trata-se do que significa para um artista ter material que não se pode tornar público. Não só por causa de problemas sérios, éticos e legais, mas também: será o momento certo para contar esta história? Não sei a resposta a estas perguntas. Tentemos descobrir o que é possível.
CHARLIE: Vou ter com uma senhora com um ventilador, e ela era adorável. Tivemos uma boa conversa. Ela era mesmo muito simpática. Tinha os seus 80 anos, uma avó como deve ser. Era mesmo muito simpática. Falámos sobre um jardim. E eu fiz-lhe umas análises de sangue horríveis, que saíram normais. E então, entrou toda a gente a dizer: “Porque fizeste isso? Não tinhas os elementos,” coisa que eu não sabia.
Fiz mais umas coisas com ela. Quando ela precisava de colheitas de sangue, ou assim, durante a semana que ali esteve. Tínhamos sempre uma boa conversa. Ela era adorável, gostei mesmo dela.
Ela tinha passado cerca de uma semana com o ventilador. E o médico especialista, um dos especialistas, disse, numa reunião da equipa, que é quando nos juntamos para discutir a evolução dos pacientes, ele disse: “Ela não está muito bem. Está com o ventilador há uma semana e não está a melhorar.” E disse: “Acho que estamos perante uma situação terminal. Isto deverá matá-la.” Ela já tinha todos os cuidados básicos da unidade, não íamos fazer-lhe uma reanimação cardiopulmonar ou mandá-la para os Cuidados Intensivos. E ele disse: “Pois, ela vai morrer, provavelmente. Mas deixemos estar, por agora. Se os níveis do ventilador piorarem durante o dia de hoje, telefonem-me e podemos ir… tratar disso.”
Recebi uma chamada do serviço. Era uma enfermeira, que é mesmo muito porreira. Ligou-me e disse: “Ela estava com o oxigénio a 100%.” E que tinha subido todos os parâmetros do ventilador. E ela disse: “Acho que está na hora.” É isto que lhes disseram. Falaram sobre isso na ronda à enfermaria desse dia. Ela piorou. A situação deteriora-se. Eu disse: “Pronto.” Então, ponho todo o equipamento de proteção e vou até lá, para lhe dizer que vai morrer. E tenho uma longa conversa com ela. Mas ela não me reconheceu, o que me magoou muito. Não pelo facto de não me reconhecer, mas porque percebi o quão impessoal aquilo era… Eu ali, com o raio de um fato espacial, a dar-lhe a mão com dois pares de luvas. Tínhamos falado antes. Eu sei quem ela é e ela não sabe quem sou. Eu podia ser qualquer uma. Não temos cara nem nomes, pessoas vestidas com o equipamento de proteção. Como astronautas.
Então, sou esta estranha a ter uma conversa com ela. E tenho de lhe dizer: “Os níveis do seu ventilador estão a piorar. Isto não está a correr bem, basicamente.” E ela sentada ali a ouvir-me. E diz: “Não vou morrer, pois não?” E eu disse só: “Acho que vai.” E o ar chocado dela.
E eu pensei: “Porque é que estou eu a ter esta conversa contigo pela primeira vez? Porque é que mais ninguém o fez? Tens 84 anos. Estás com um ventilador, a morrer por causa deste vírus fatal. E eu sou aquela pessoa sem cara e sem nome, que tu não reconheces, e que está a dar em louca por saber que vais morrer. E sei que te sentes na mesma, porque estás com o ventilador há uma semana e já te habituaste a ele. Mas vais morrer.”
THE VACUUM CLEANER: É duro demais? Será que o mundo em que vivemos agora é duro demais? Para mim, sim.
Não sei o que diga nem sei o que faça. Exceto: “Fiquem em casa!”
E abraçar-me às pessoas que amo e dizer-lhes como gosto delas. E dizer aos profissionais de saúde: sei que não são heróis, mas que tenho muito orgulho no que fazem.
CHARLIE: A filha dela chegou a tempo. Decidiu pôr-se à estrada e nós conseguimos aguentá-la até de manhã, por isso… ela pode dizer adeus aos dois filhos. E eu só me lembro de lhe pegar na mão com a luva. Parecia tão errado. E acabou.
THE VACUUM CLEANER: Lamento imenso que isto te tenha acontecido.
CHARLIE: Eu também.
THE VACUUM CLEANER: É muito triste.
CHARLIE: Pois é.
THE VACUUM CLEANER: Acredito mesmo que a arte nos pode ajudar a sarar.
Mas, de momento, estamos todos tão doentes. Não sei que quanta arte precisamos para recuperarmos. Não sei se somos suficientemente fortes ou corajosos. Ou se somos suficientemente bons como artistas. Mas sei que os profissionais de saúde se estão a esforçar. Esforçam-se mais, dia após dia. E sabem que mais? Enquanto artistas, não temos escolha… porque temos todos de sarar, depois disto.
***
LAURA LOPES: Este foi “How to Hold the Bug” de the vacuum cleaner. Dito e Feito é um podcast do Teatro do Bairro Alto. A edição é de Sara Morais e a música é de Raw Forest. Acompanhe o TBA nas redes sociais e em teatrodobairroalto.pt.