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Dito e Feito #08 Transcrição – Franco “Bifo” Berardi

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Se preferir, pode ouvir este podcast aqui

 

Este é o Dito e Feito, um podcast produzido pelo Teatro do Bairro Alto, onde falar é uma forma de fazer e vice-versa.

Chamo-me Ana Bigotte Vieira. Sou programadora da área de discurso do TBA. Por discurso, entendemos as conferências, conversas, edições, investigações e coisas que tais, mas também aquilo que, sem ser necessariamente explícito, molda o que fazemos, o que dizemos e o que vemos. Este episódio chama-se Franco Bifo Berardi, Um Glossário Experimental e é da autoria do filósofo Franco “Bifo” Berardi, também fundador da Rádio Alice, a primeira rádio livre em Itália entre 1976 e 78, a quem pedimos para fazer uma espécie de glossário de termos que tem vindo frequentemente a usar. Estes termos, estas palavras, por vezes pares de palavras ou trios de palavras, foram por nós impressas em papel e dispostas voltadas para baixo em cima da mesa do estúdio. Há termos escolhidos por nós e termos recolhidos a pedido, depois da sua conferência no TBA. Franco aleatoriamente pega nas palavras impressas, lê-as e troca-as por miúdos, compondo o dito glossário. De vez em quando, passamos música. Este episódio é em inglês.

 

 

00:01:20

Algoritmo. Bem, algoritmo não tem nada a ver com a palavra “ritmo”, mas podemos inventar etimologias. Não nos interessa tanto a etimologia, interpretamos a palavra livremente. Só para precisar, algoritmo é uma palavra que vem do nome de um matemático árabe que se chamava al-Khwarizmi. Ao que parece, é o criador da teoria a partir da qual induzimos a palavra moderna “algoritmo”, a qual, como sabeis, significa uma sucessão matemática que contém em si a possibilidade de um desenvolvimento físico do próprio algoritmo. Mas não queremos seguir a regra etimológica e inventamos o significado desta palavra. Em grego, algos significa “dor” e “ritmo” é a relação entre um organismo e o meio envolvente. Portanto, a palavra “algoritmo” parece implicar o sofrimento da relação entre o nosso organismo biológico, a nossa alma e o nosso corpo [por um lado] e o universo envolvente, que é cada vez mais dominado pela regra matemática [por outro lado]. Algoritmo é um ritmo sofrido imposto pela força, pela ferocidade da ditadura matemática do capitalismo tardio.

 

00:03:40

1969, 77. Preciso de três, quatro horas para desenvolver estas duas palavras estranhas, que não são palavras, mas números. Numerologia. Gosto de numerologia. Para falar com franqueza, a minha imaginação gira toda em torno de alguns números enigmáticos, como 68. Bem, 68 é um número muito estranho. [19]68 é o ano em que Stanley Kubrick rodou um dos filmes mais importantes da história do cinema. O título do filme, como vos lembrais, é 2001: A Space Odyssey [2001: Odisseia no Espaço]. É o cerne desse ano. Alguns lembram-se de que, durante esse ano, em Roma, em Xangai, em Paris, em São Francisco, em Praga e na cidade do México, milhões de estudantes, de trabalhadores, ocuparam as ruas e cantaram lemas contra o imperialismo e o capitalismo e por aí fora, mas isso não me interessa. Eu centro-me no filme de Stanley Kubrick, porque está tudo nesse filme. Lembrais-vos do momento em que o capitão da nave espacial, de cujo nome não me lembro… Dave! O momento em que Dave olha para o autómato, o robô, o cérebro central da nave espacial e, olhando o autómato nos olhos, percebe que está a acontecer alguma coisa de errado. Alguma coisa de errado. Então, o que é que se pode fazer? O autómato está a apoderar-se da nossa vida, está a apoderar-se da nave espacial e a conduzi-la em direção ao nada, em direção a um destino desconhecido que não desejamos. Assim, Dave decide fazer a coisa mais dramática possível, mas a única forma de escapar a um destino negro de destruição e morte: Dave decide desligar o autómato. Estamos em 68. 68 é o momento, o ano em que milhões de trabalhadores intelectuais em todo o mundo decidem desligar o autómato criminoso do capitalismo. 68 é mais ou menos [quando] uma esperança generalizada de liberdade se espalha por todo o mundo. Mas as coisas mudam inesperadamente, como sempre que a história se torna interessante. Depois de 68, trabalhadores e estudantes marcham nas ruas do mundo contra o capitalismo, mas [19]77 é como que o momento de subversão da esperança. A esperança, a esperança de igualdade e justiça, a esperança de cumprimento da promessa moderna, essa esperança desaparece. E 77 é o momento em que, numa derradeira insurreição, os trabalhadores intelectuais, os trabalhadores precários do mundo gritam que o futuro acabou. O futuro acabou. Ainda vivemos no momento que começa em 77. Em Roma, em Bolonha, em Londres, em muitas cidades no mundo, jovens declaram que o capitalismo destruiu o futuro.

 

00:09:04

No Future (God Save the Queen) – Sex Pistols

 

00:10:14

Para o Fernando Ramalho, vou dizer qualquer coisa sobre o colapso. Colapso. Colapso. Bem, um organismo complexo como o nosso corpo, ou como o corpo de uma sociedade, a dada altura, pode chegar a uma situação de sobrecarga – sobrecarga de sangue, de dinheiro, de ação, de trabalho, de ruído, de informação – e esse tipo de acumulação de estímulos pode conduzir o organismo ao colapso. Colapso. Gosto do som da palavra. Colapso é o momento em que o organismo começa a perder a sua integridade. É o início do processo de desintegração. Por que razão ouvimos a palavra “colapso” com tanta frequência na nossa época? Talvez não ouçamos, mas sentimos o colapso no ar. Bem, a razão é simples. A razão é que o capitalismo produziu um efeito de autorreplicação, de vírus como o vírus da acumulação financeira, da explosão do trabalho e por aí fora. O capitalismo é uma espécie de processo de replicação infinita de algo que não pode ser replicado indefinidamente, porque vai rebentar com o próprio organismo. Pensai na Greta Thunberg a discursar na Organização das Nações Unidas United há algumas semanas. O que disse ela? Ela disse, a certa altura: “Há pessoas a morrer, há pessoas a sofrer, há ecossistemas inteiros a colapsar e vós só pensais em dinheiro, só pensais e sonhais com o crescimento económico infinito”. No discurso de Greta, estão presentes todos os elementos do colapso. Para começar, a razão do colapso atual é esta espécie de conto de fadas, esta espécie de pesadelo, que é o crescimento infinito, a replicação infinita do mesmo, do mesmo, do mesmo. Mas o organismo vivo do planeta, os organismos vivos da sociedade não podem aceitar, não podem coexistir com este tipo de replicação infinita. Portanto, a certa altura, como diz Greta, há ecossistemas inteiros a colapsar, a desintegrar-se, a perder consistência e a perder vida. Porque o colapso é lindo, quando se ouve a palavra numa voz irónica como a minha, mas acaba por conduzir à morte.

 

00:15:14

Respirar. Asfixia. Descobri a asma no ano 2007. Estava na cidade de Banguecoque. Nunca tinha ido à cidade de Banguecoque. Fui lá, era verão, julho. Na cidade, estava a chover e um calor incrível, humidade, e eu parei de respirar de repente. Não sabia qual era o problema, mas, após seis ou sete dias na cama do quarto de hotel, decidi regressar. O médico disse-me: “É asmático”. Entrei num universo novo, num universo metafórico novo. Gosto de metáforas. Gosto de asma enquanto metáfora, não enquanto realidade física. Gosto desta metáfora, porque é a melhor maneira de compreender o que está a acontecer ao planeta, o que está a acontecer à nossa sociedade, o que está a acontecer a toda a gente. A asma é uma afeção em rápida disseminação que ataca cada vez mais pessoas, especialmente crianças, gente nova, nas cidades poluídas do mundo. Antes de mais, a asfixia é o feito físico de um excesso de substâncias venenosas em suspensão no ar que respiramos. Mas, em segundo lugar e metaforicamente, eu diria que tudo no seio da sociedade capitalista do nosso tempo é veneno. Todos os fluxos de informação, de ar, de alimento, de linguagem têm um efeito venenoso no nosso cérebro, no nosso corpo, na nossa afeção. Descobri o sentido metafórico da asma, quando vi na televisão as imagens do homem negro morto na cidade de Nova Iorque há alguns anos. O tipo era asmático e estava a vender cigarros na rua, o que é ilegal. A polícia queria prendê-lo. Ele teve uma reação muito tranquila e pacífica, mas a polícia agrediu-o. Oito polícias agrediram o tipo, que se chamava Eric Garner. Atiraram-no ao chão e obrigaram-no a ficar numa posição que ele não conseguia tolerar. Por isso, Eric Garner disse oito vezes, “Não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar, não consigo respirar.” Depois, morreu.

 

00:19:24

Air (da peça Hair)

 

00:20:50

Código. Há uma relação especial entre linguagem e futuro. O código é uma das modulações possíveis da relação entre linguagem e futuro. O lugar que é hoje ocupado pelo código foi outrora ocupado pela profecia. O que é um profeta? Um profeta é alguém que diz o futuro, alguém que diz palavras que preveem, que anteveem, que num certo sentido anunciam e convocam o futuro. Isso é um profeta. Mas a profecia mudou de forma na era tecnológica e foi em grande parte substituída por código. O código inscreve o futuro dentro da linguagem. O código é uma ferramenta linguística, um sistema de símbolos que inscrevem a condição futura do mundo dentro da sua estrutura. O código é a inscrição do futuro e, ao mesmo tempo, funciona como uma forma de prescrição do futuro. Estamos lentamente a passar da dimensão da linguagem descritiva para a dimensão da linguagem prescritiva. Quando houver quantidades gigantescas de dados ligadas a autómatos inteligentes, nessa altura, o código criará uma bola [de cristal] para prescrever o futuro, para impor as formas do futuro aos organismos linguísticos – os seres humanos, que são forçados a seguir essa espécie de profecia inscrita que é o código. Podemos fugir ao código? Essa é uma boa questão. Infelizmente, não tenho uma resposta, porque fugir ao código é o enigma principal do nosso tempo.

 

00:24:20

Para o Amador Savater. Caro Amador, procuro responder a uma das tuas questões e claro que as tuas questões são bastante refinadas e difíceis de desenvolver, como sempre, mas eu faço o que posso. Sabes, já estou a responder à primeira das tuas palavras, que é utopia senil. Estou a tentar, sou velho. Sim, sou um tipo velho, que está a tentar responder a questões difíceis. Num certo sentido, esta é a minha resposta, mas tento desenvolver mais um pouco. Utopia senil. A senilidade é uma tendência muito generalizada e importante no nosso tempo, porque a idade média da espécie humana, especialmente no hemisfério norte, é cada vez mais alta. As pessoas estão a viver mais tempo. E também – graças a Deus – as crianças são cada vez menos obrigadas a vir para este mundo. Então, o resultado destas duas tendências diferentes, mas convergentes, é a senescência da espécie humana, o envelhecimento da espécie humana. O efeito até ao momento não é muito bom, porque o esgotamento começa a tornar-se no destino do planeta e no destino da espécie humana. O capitalismo destruiu os recursos físicos do planeta e está a destruir os recursos nervosos do cérebro humano. De repente, o destino das pessoas senescentes torna-se no destino da maioria da espécie humana. Não apenas porque um terço da população do hemisfério norte tem mais de 65 anos, mas também porque o esgotamento se está a tornar no destino comum da maioria da população humana. Eu sei que parece um destino mesmo mau, mas deveríamos ser capazes de transformar esta tendência numa possibilidade. Deveríamos ser capazes de transformar o estado de esgotamento num estado de lentidão, de desacelerar o ritmo médio da nossa vida. Deveríamos ser capazes de transformar a senescência num estado de amizade na relação com a morte. “Extinção” é uma palavra que entrou recentemente no léxico político do movimento. Pela primeira vez na história da humanidade, a extinção torna-se numa perspetiva realista para o futuro. Deveríamos ser capazes de encontrar a possibilidade de a transformar numa relação mais descontraída com a passagem do tempo.

 

00:29:19

[Exterminator! – William S. Burroughs]

O Coronel decide fazer o seu próprio tempo e constrói um calendário simples, que consiste em dez meses com 26 dias cada. Os meses têm nomes como vagões Pullman antigos, onde o Coronel vivera até aos 18 anos. Cheiro de fuligem e vapor e ferro e fumo de charuto à medida que o comboio solavanca em direção ao passado. O Coronel solavanca de regresso ao AGORA. O Coronel decide, neste dia cinzento e ameno, trazer o seu tempo para o tempo presente. Olha para os objetos na mesa de pequeno-almoço, calculando os passos para a limpar. Mede a distância da sua cadeira à mesa, como a recuar e levantar-se sem bater na mesa com as pernas. Descobriu a Disciplina simples e básica de FF. FAZER FÁCIL. Torna-se num estudante assíduo de FF. Limpar o apartamento é um problema de logística. Conhece todos os papéis, todos os objetos, e muitos deles agora têm nome. Facas, garfos e colheres passam-lhe pelos dedos num lampejo e tilintam ao entrar nas gavetas. Aperfeiçoou a arte de “atirar” lençóis e cobertores, de modo a caírem assim mesmo. Maços de cigarros e papéis amarrotados aterram infalivelmente no caixote do lixo tal como um mestre zen consegue atingir o alvo com a flecha no escuro. FF é uma forma de fazer. FF significa simplesmente fazer o que quer que seja da forma mais fácil e mais descontraída que se consiga, que é também a forma mais rápida e mais eficiente, como se aprende ao progredir em FF.

 

00:31:12

Novamente para o Amador. Cortesia. A palavra “cortesia” entra na linguagem literária quando a população europeia, a cultura europeia sai da Idade Média e entra na idade da burguesia e na modernidade. Eu diria que a palavra “cortesia” ocupa um lugar central na civilização (se posso usar esta palavra de uma forma positiva), na transformação para bem da sociedade moderna. Cortesia é a capacidade de sentir de forma empática as pessoas com as quais se lida e é a capacidade de elaborar rituais de sensibilização para a relação. Cortesia é uma estratégia de humanização do instinto animal na relação. Talvez Darwin tenha tido razão, quando disse que, na Natureza e na história da humanidade (uma vez que a a história da humanidade faz parte da Natureza, num certo sentido), ganha sempre o mais forte, o mais apto. Talvez Darwin tenha tido razão. Não sei. Mas o problema é que os seres humanos foram capazes de criar uma dimensão que está fora da selva, que está fora da brutalidade da relação natural entre animais. Eu sei que a Natureza é cruel, é feroz, mas nós não somos apenas seres naturais. A questão é essa. Mesmo que reclamemos o direito de defender a Natureza, ao mesmo tempo sabemos que não somos apenas seres naturais. Somos corteses, se posso dizer. Somos seres capazes de sentir a presença do outro como um prazer linguístico. O problema é que a aceleração do ritmo de comunicação, a aceleração da vida e da troca linguística está a destruir a possibilidade de cortesia. Quando somos obrigados a lutar pela vida, quando o tempo e as palavras estão limitados ao estritamente indispensável para a sobrevivência, nessa altura, a sensibilidade que torna possível a cortesia na relação com o outro desaparece. Assim, entramos na era do trumpismo, que se baseia numa epidemia de descortesia. Essa é a afeção que está a destruir a vida humana no nosso tempo.

 

00:35:52

Espasmo. Espasmo é uma expressão médica que se refere à contração dolorosa de um órgão do nosso corpo. O espasmo é o efeito de uma aceleração do ritmo do músculo, do cérebro, de todo o corpo. Quando se é obrigado a correr mais depressa do que o ritmo natural, nessa altura, corre-se o risco de espasmo. Talvez espasmo seja a palavra que pode definir a nossa era de aceleração. A era da aceleração infinita do ritmo social e comunicacional entra numa dimensão de espasmo, de aumento doloroso do ritmo do corpo sensível. O efeito do espasmo é obviamente o desaparecimento, a desintegração da sensibilidade e acaba por se deixar de ter a capacidade de sentir a presença do corpo do outro. Seremos capazes de sair deste espasmo dimensional? De acordo com Félix Guattari, estamos na era do espasmo caósmico, um espasmo que vai na direção de uma possibilidade de caosmose – entendendo-se caosmose como a recriação de equilíbrio entre o ritmo do corpo e o ritmo da infoesfera envolvente. Portanto, o espasmo é um distúrbio que pode levar à morte, à extinção, ou pode levar a um ritmo novo, a uma relação empática nova com o universo.

 

00:38:39

[música]

 

00:40:57

Dedico esta resposta à Mariana Pinho. Psicadelismo. Comunismo ácido. O que é o psicadelismo? Psicadelismo é a capacidade de transformar o eidos, a forma do nosso cérebro, da nossa mente, da nossa alma, do nosso entendimento perante as formas em mutação do universo. Psicadelismo não é simplesmente o efeito de um comprimido, não é simplesmente o efeito de uma droga que se pode ingerir para provocar alterações na atividade nervosa. Claro que é isso, mas pode ser muito mais do que isso. Pode ser a condição para uma nova sintonização. Caosmose, diria Guattari. Podemos nomeadamente definir o psicadelismo como uma possibilidade de transformação do cérebro social. O cérebro social está doente, isso é absolutamente claro. Vivemos numa espécie de epidemia de descortesia, uma espécie de epidemia de loucura agressiva, uma epidemia de medo, paranoia. Nem sequer é estranho para este tipo de psicopatologia gigantesca. Isto é o resultado da aceleração da exploração de energias nervosas. A humanidade foi submetida a uma espécie de aceleração agressiva da infoesfera. Somos obrigados a receber, desenvolver e responder com uma quantidade crescente de estímulos nervosos dia após dia. Digo estímulos nervosos e quero dizer informação, já que a informação é essencialmente um estímulo nervoso. Não se consegue compreender o efeito de uma informação se não se referir a reação nervosa do corpo. Somos bombardeados com milhões de estímulos nervosos que estão constantemente a instigar o nosso corpo a reagir e essa eletrocussão permanente em que vivemos está a ter um efeito patológico no nosso cérebro. O que é o comunismo na nossa era? O comunismo de que necessitamos não é um regime político de submissão da vida a uma ordem nova. Não é uma ordem nova. Não é de todo uma ordem nova. É uma sintonia nova. É uma relação sintónica nova entre o nosso cérebro, o nosso corpo social e a possibilidade que está inscrita na transformação da tecnologia. A transformação da tecnologia é um perigo, mas é também uma possibilidade. Mas se queremos ser capazes de sintonizar a possibilidade, precisamos de um ato psicadélico, precisamos de uma jogada neuro-plástica, precisamos de uma transformação no nosso cérebro – do nosso cérebro individual e sobretudo do nosso cérebro social. Talvez a psilocibina e o ácido lisérgico possam ajudar nessa transformação, mas não é uma questão de comprimidos. É uma questão de comprimidos e muito mais do que comprimidos. É comunismo ácido.

 

00:46:36

Esta é para o André e o Teodósio. Semiocapital. Ena. Obviamente que, quando se entra na dimensão da produção de informação, o processo de criação de coisas, de produção de valor (e também o processo de troca económica) baseia-se cada vez mais na circulação de semia, de signos, de informação. O capitalismo na era atual é essencialmente um processo de produção semiológico. A convergência da máquina financeira e da tecnologia digital conduziu a nossa economia a um ponto de transformação quase completa do processo de produção num processo semiótico. Eu sei que continuamos a produzir carros e mesas e coisas materiais, mas a produção de carros está a tornar-se cada vez mais num processamento de signos. Produzir um carro é cada vez mais o resultado de um processo informático de elaboração e transmissão de dados e, no final, de manipulação mecânica de coisas. Portanto, o capitalismo é um sistema semiótico. Isso tem consequências claras nas formas do trabalho. O trabalho torna-se cada vez mais numa atividade essencialmente nervosa. O que é o trabalho hoje em dia? Para boa parte da força de trabalho global, o trabalho baseia-se em estar sentado a uma secretária, a realizar a mesma atividade digital, mas a produzir efeitos físicos muito diferentes. Claro que eu sei muito bem que a maior parte da humanidade continua a trabalhar com as mãos nos campos ou nas fábricas, mas o funcionamento global da produção global é mediado por máquinas semióticas digitais. O efeito desta transformação no cérebro humano é um efeito de esgotamento. O vosso cérebro está sob pressão; o vosso cérebro é objeto de um tipo de exploração novo. O processo de emancipação do semiocapital tem regras, tem formas que diferem das regras e formas da antiga classe de trabalhadores manuais. Que regras são essas? Que formas de emancipação são essas? Esse é o problema atual do movimento em todas as partes do mundo. Lidar com trabalho precário, lidar com trabalho digital semiótico e intelectual implica a criação de formas de organização e luta totalmente novas. Estamos à procura das novas formas. Temos de nos apressar nessa pesquisa, porque o semiocapital (pressupondo o saque financeiro) está a destruir o mundo.

 

00:51:49

Senza un perché – Nada Malanima

 

00:54:28

Sensibilidade. Claro que sensibilidade remete para os nossos sentidos, mas não é como a perceção. A sensibilidade é uma dimensão do nosso entendimento. Se tivesse de definir o conceito de sensibilidade, diria que sensibilidade é a faculdade que torna possível decifrar, compreender alguma coisa que não se pode dizer por palavras. Sensível é o organismo que é capaz de decifrar signos que não são transmitidos por símbolos. Sensível é um organismo que é capaz de detetar mensagens não verbais no comportamento comunicacional de outro organismo. A sensibilidade está em risco na transformação atual da linguagem, na transformação atual da comunicação, porque o ciclo de comunicação no nosso tempo, na era das tecnologias digitais, está cada vez mais transformado na ligação e na transferência de signos digitais. Como pode um organismo sensível distinguir o significado ambíguo de um signo não verbal num ambiente digital? Nós, humanos, entrámos no reino das comunicações de acordo com a regra da conjunção. Corpos conjuntivos detetam o significado das mensagens, não por reconhecerem a estrutura formal das mensagens em si, mas por serem capazes de decifrar o significado na névoa da ambiguidade. A ambiguidade é a condição do nosso entendimento diário. A sensibilidade é a capacidade de encontrar o caminho na névoa da ambiguidade. Talvez estejamos a perder essa capacidade. Nesse caso, enquanto seres humanos, vamos perder-nos completamente.

 

00:58:35

[música]

 

01:00:31

Dito e Feito é um podcast do Teatro do Bairro Alto. A gravação é do Estúdio Fisga, a edição é da Sara Morais e a música é de Raw Forest. Acompanhem o TBA nas redes sociais e em teatrodobairroalto.pt.

 

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