Dito e Feito #06 Transcrição – Adriana Sá, Ricardo Jacinto & Yaw Tembe
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Este é o Dito e Feito, podcast do Teatro do Bairro Alto, onde falar é uma forma de fazer e vice-versa. A periodicidade deste podcast é irregular. O formato também. Por vezes, segue de perto a programação; outras vezes, de longe; e outras ainda, não a segue de todo.
Eu chamo-me Diana Combo e sou programadora de música e artes sonoras do TBA. Neste episódio, conversamos com Adriana Sá, Ricardo Jacinto e Yaw Tembe a propósito de Coral Furtivo, uma peça musical especialmente composta para a sala do Teatro do Bairro Alto e que vai ser apresentada no dia 21 de novembro.
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Diana Combo Olá. Obrigada por aceitarem este convite, Adriana, Ricardo, Yaw, não só para apresentarem o vosso espetáculo no Teatro do Bairro Alto como para conversarmos sobre o vosso projeto, o vosso propósito e a vossa metodologia. Gostava só de introduzir, para o nosso público também conhecer, a ideia por trás deste concerto. Eu lembro-me que, há um ano, entrei em contacto contigo, Adriana, e disse-te que gostava de te propor a oportunidade de apresentares o primeiro concerto na sala principal do Teatro do Bairro Alto. E lembrei-me de te propor alguém para trabalhares com e esse alguém era o Ricardo Jacinto. Depois, expliquei-te que havia a possibilidade – e havia a vontade da nossa parte também – de vocês pensarem em incluir alguém e fazerem assim esta proposta em trio, mas que deixávamos em aberto a escolha de um terceiro elemento, que podia muito bem chegar um bocado mais tarde [em relação a] os vossos primeiros encontros, em que iriam definir entre vocês, Ricardo e Adriana, os primeiros toques do projeto. Essa pessoa, esse terceiro elemento, poderia vir responder a alguma vontade ou a alguma ideia que estivesse, já então, em cima da mesa. Então, gostava de vos perguntar, porque também não sei tudo, como é que surgiu o Yaw.
Adriana Sá Antes de mais nada, senti-me naturalmente super-honrada com o convite para inaugurar a programação de concertos do TBA, inclusivamente porque conheço grande parte da equipa. Foi curioso teres-me proposto trabalhar com o Ricardo Jacinto, com quem já trabalhei muito há diversos anos. Não tinhas conhecimento desse facto, portanto calculo que estivesses interessada em ver como é que ambos os percursos se poderiam cruzar, tendo em conta que ambos trabalhamos a música ligada também à visão e ao espaço. Para além do som, ambos temos inquietações sobre o modo como o percurso musical é experienciado. Isto foi uma situação muito curiosa. Isto permitiu-me assumir uma série de coisas. Eu já conhecia como é que o Ricardo trabalhava, já conhecia a sua sensibilidade, ele já conhecia a minha. Embora já tivessem passado muitos anos, havia algumas questões que nós sabíamos que poderíamos explorar antecipadamente. Fomos visitar o TBA ainda em construção e, pela primeira vez, falámos sobre quem é que poderia tocar connosco. Eu conhecia o Yaw, sempre gostei do trabalho dele, mas não o conhecia profundamente nem nunca tinha trabalhado com ele. O Ricardo já tinha trabalhado com ele noutros contextos. A ideia partiu do Ricardo – “Que tal o Yaw Tembe?” – e a minha resposta imediata e intuitiva foi: “Trompete com cordas?!” [risos] Devo explicar um pouco melhor este pensamento ou esta reação espontânea. O trompete é um instrumento muito afirmativo – não é por acaso que é usado na tropa [risos] – e o som, o timbre da zither (o instrumento que eu toco) caracteriza-se por nuances muito subtis. Eu, quando disse “Um trompete connosco?!” ao Ricardo, completei a exclamação, a pergunta, com este facto: o trompete tende a tornar-se superproeminente. E o Ricardo respondeu de imediato: “Não. Mas o do Yaw não.” [risos] E eu: “Pois é. É verdade.” [risos]
Yaw Tembe Há muitos trompetes.
AS E, depois, falou-me também das máscaras que o Yaw criou e que veste, com as quais altera o timbre do trompete. Isso também acrescentou algo que eu não sabia de antemão, que é: o Yaw é formado em artes plásticas também, como nós os dois, e é alguém que considera que a música envolve mais do que o som.
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DC É interessante, agora, estarmos a falar também destas quase coincidências. Primeiro, eu ter pensado no Ricardo. Afinal, tu já teres um grau de familiaridade com ele e, de repente, sentir que o Yaw era o único elemento que podia fazer parte deste trio, já que eu, neste momento, não posso fazer e com muita pena minha. [risos] Eu, quando sugiro um terceiro elemento, gostava que me dissesses: “Podes ser tu, Diana?”, mas não. [risos]
AS Ocorreu-me. [risos]
DC Ocorreu. Mas lembro-me – e isto tem muito a ver com as nossas conversas de ensaios para o nosso concerto no Teatro Maria Matos contigo, com o Johnny, com o Tiago (eu estava na percussão e, também na altura, tinhas referido: “Percussão pode-se impor demasiado”. Tal como tu dizes: “A voz pode-se impor demasiado”) – [d]o porquê de eu querer dar o título a este episódio de Somos Todos Ouvidos. Eu acho que, quando nós somos todos ouvidos, qualquer instrumento pode ser trabalhado de uma maneira que só impõe se tiver que impor, porque é a nossa vontade. Tu também te abres a introduzir instrumentos que, à partida, parecem não ser aqueles que te interessam.
AS Exatamente.
DC Só para dizer que tu também acabas de dar um concerto…
AS Com voz. [risos]
DC … muito bem descrito pelo…
AS Rui Eduardo Pais
DC … Rui Eduardo Pais, sim, com voz.
AS Exatamente. Ainda bem que referes isso, porque essa experiência contigo – tu chamaste-lhe percussão, porque foram as técnicas que tu utilizaste, mas, na verdade, estavas a tocar bateria, era o instrumento – correu muito bem. Nós, na altura, falámos sobre o modo como a bateria podia soar de modo desencontrado sem cancelar os outros instrumentos e isso, de facto, ajudou-me. Naturalmente já tenho experiências anteriores de tocar com instrumentos mais proeminentes, mas essa experiência em particular fez-me perceber o grande potencial de tocar com o trompete do Yaw, que consegue emergir e submergir na música. A mim pessoalmente, interessa-me formas musicais em formato de transe, em que, às vezes, os instrumentos se confundem; depois, vão em direções diferentes. E o Yaw tem essa sensibilidade natural. Já tinha; não foi algo que ele adquiriu neste projeto. Assim como o Ricardo e eu própria.
DC Foi um ano de encontros e eu sei que vocês começaram a trabalhar muito pouco tempo depois de a proposta ser feita, de vos ter levado – a ti, Ricardo, e à Adriana – a visitar o espaço do Teatro do Bairro Alto. E fui acompanhando. Não estive nos ensaios, mas a Adriana várias vezes me telefonava a explicar como as coisas estavam a correr. Gostava de perceber como é que, dos primeiros encontros até agora, as coisas foram evoluindo, se foram desenvolvendo e, sem desvendar muito, porque a ideia é aguçar o apetite ao nosso público, para estarem presentes no dia 21, gostava que, pelo menos, pudéssemos aqui fazer uma descrição daquilo que é a vossa proposta.
YT O ponto de partida, se calhar, do trabalho surgiu muito desse ponto que estavas a mencionar agora, de como conseguir pôr os três instrumentos no mesmo plano. Começámos com pequenos exercícios de incorporar som do outro instrumento na nossa forma de tocar. Por exemplo (não quero abrir demasiado), no caso da Adriana, ela está a usar um software em conjunto com a zither e ela tem vários samples do trompete e do violoncelo incorporados. Por exemplo, o Ricardo está a usar também em conjunto com o violoncelo um sistema de feedbacks e isso também me levou a querer pegar em ideias antigas, que eu tinha para explorar – a questão dos harmónicos. Sinto que isso está muito ligado com o feedback que o Ricardo tem explorado também. Mesmo a questão do slide que a Adriana usa: eu acabei por construir um trompete que consegue percorrer todos esses microtons, um híbrido entre trompete e trombone. Tudo isto acho que foram tentativas para tentarmos encontrar uma linguagem comum e, a partir daí, cada um de nós conseguir explorar para o seu lado a partir desse ponto. Do que eu me lembro, acho que isso foi das primeiras coisas que tivemos como interesse comum e ponto de partida.
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Ricardo Jacinto Sim. E acho que estes exemplos que o Yaw está a dar de algum modo são exemplos que têm a ver com uma espécie de período inicial de auscultação de como é que cada um de nós abordava o seu instrumento e as extensões do seu instrumento, seja na eletrónica, seja na preparação dos instrumentos, seja no modo como os instrumentos se estendem também a ser uma parte do próprio espaço do palco, da cenografia. Como é que essas coisas todas se articulam. Isso foi também um ponto de partida importante. Qualquer um de nós tem essa visão, como a Adriana também referiu logo no início, sobre o que é que pode ser o ritual da música, o que é que pode ser essa relação com o público e com um determinado espaço, como é que o som e a música emergem também da construção desse espaço. Isso, articulado com esta outra questão de como é que os instrumentos também se podem entrançar (esta imagem que a Adriana também utilizou) e diluírem-se uns nos outros, do ponto de vista tímbrico, do ponto de vista do próprio vocabulário, eu acho que isso (como eles estavam a dizer e eu reitero isso) foram os dois pontos de partida mais relevantes. Depois, eu penso que a abordagem à especificidade de cada um de nós, à especificidade de cada um dos instrumentos, a partir das nossas escolhas e do nosso input neste projeto, foi ligeiramente diferente, mas foi-se acomodando. Eu acho que isto também teve a ver com as conversas que depois tivemos. Eu tinha trabalhado com a Adriana já há muitos anos atrás. Depois, tivemos um longo período sem colaborarmos e isto reavivou uma série de relações que tínhamos estabelecido. Foi interessante ver também onde é que aquilo que já existia naqueles momentos iniciais, naquelas primeiras colaborações, tanto da abordagem dela como da minha, ao fim destes anos todos, onde é que isso veio ter, onde é que foi parar. Foi muito interessante voltar a articular isso. Depois, especificamente para este concerto, para mim, foi muito engraçado olhar para os instrumentos e para as soluções de cada um como uma espécie de lugar que eu iria habitar com o vocabulário que tenho construído, com o sistema que tenho construído. Portanto, houve muito esta ideia de entender as coordenadas daquilo que é o lugar da Adriana – entre aspas, não estamos aqui a falar propriamente de territórios, mas de lugares, que são talvez um conceito mais fluido e mais aberto – e como é que isso também acontecia no Yaw. Portanto, há uma espécie de uma resposta também específica a este contexto e que eu acho que funcionou. Quer dizer, neste momento, eu pessoalmente estou extremamente satisfeito. Acho que houve uma coisa interessante ao longo do processo: em determinada altura, até por estas questões, lançou-se esta ideia de cada um de nós tomar conta da composição de uma parte do concerto. Isto aconteceu e, a partir daí, estabeleceram-se uma série de diálogos também de um ponto de vista muito diferente: como é que as orientações da Adriana se refletem nas minhas respostas ou nas do Yaw e vice-versa. Como é que nós conseguimos também dar corpo às ideias do Yaw ou eles às minhas. Foi um processo que acabou por ser bastante proveitoso.
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AS Eu, por acaso, tenho algo para acrescentar aí, que talvez valha a pena referir, que é o facto de a nossa dramaturgia sonora, de as nossas decisões em termos de composição não terem sido algo que absolutamente precedeu ou sucedeu ao desenvolvimento e à calibração dos nossos instrumentos. Também em relação ao desenvolvimento e afinação, entre aspas, dos instrumentos, o trabalho composicional e as decisões composicionais, tudo isto se foi transformando à medida que íamos tocando e experimentando. Eu alterava os meus samples, o Yaw alterava os seus objetos ressonantes, o Ricardo alterava o seu sistema de feedback. Há também algo que eu acho interessante referir, para dar continuidade àquilo que o Ricardo disse: quando nós decidimos que cada um de nós era responsável por um terço da composição, cada um utilizou o seu próprio sistema de notação gráfica para visualizar, para representar essa composição. A junção desses três sistemas, o que é que resulta dela? O que é que as notas que o Yaw achou importante dar e que incluem, por exemplo, métrica…? Como é que eu posso interpretar isso, eu que não trabalho com tempos de relógio? Isto foi parte de um processo que, para mim, foi muito interessante também. O Ricardo chegou com uma partitura e o Yaw com outra e isso levou-me a cortar a minha partitura e a alterá-la também. Portanto, isto foi um processo interativo.
DC Há pouco tempo, perguntaram-me o porquê de eu ter proposto este trio. No fundo, não propus o trio, não especificamente, mas abri caminho. Não sei se dei uma resposta assim tão completa, mas a verdade é que essa pergunta me fez pensar muito bem, concretamente, e há determinadas qualidades nas pessoas – e, por isso, nos músicos – que me interessam, principalmente quando já têm um caminho estabelecido por si (quando digo “por si”… numa espécie de trabalho a solo ou carreira a solo, como [lhe] podemos chamar), que tem muito a ver com a generosidade e a capacidade de entrar em novos processos. A vontade – aliada a essa capacidade – de se deixarem contaminar e crescer. Porque é fácil, penso eu, quando nós temos experiência, sentir que já sabemos alguma coisa, que essa coisa é assim. E, às vezes, não é muito fácil deixar entrar outras pessoas, outras energias, ou deixar que essas energias nos modifiquem, ainda que essa modificação não passe por uma total diluição. Estou arrepiada [risos], porque um convite é uma coisa, mas, se estas ideias, isto que está por trás, que eu se calhar não vos tinha contado, mas que alimentou… Nesta conversa, eu sinto que aconteceu.
AS Tinhas razão. [risos]
DC [risos] O convite foi dirigido a ti, mas não há uma hierarquia. Há simplesmente uma vontade de deixar que estas energias passem uns pelos outros e essa energia modifica-se e deixa-se modificar. Portanto, sinto que, ao longo do ano, vocês também foram alterando (como o Ricardo estava a dizer) as vossas respostas e os vossos lugares. Parece que estou a constatar, mas a pergunta talvez seja: no dia 21, o que vai acontecer já é uma coisa diferente daquela que vocês poderiam ter imaginado, ainda que cumpra alguns desses princípios?
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AS Eh, lá. Acho que isso era uma questão [a] que cada um de nós podia responder por si, individualmente. [risos]
DC Eu, pelo menos, começo a ver um rider que já se modificou ao ponto de eu ver um instrumento que não estava lá no início. Portanto, sinto que há, de facto, uma mudança. Não é um desvio, é qualquer coisa que se introduz, porque faz sentido ao longo do caminho.
AS No meu caso particular, eu não imaginei nada. Eu encarei este trabalho como um processo de descoberta do que é que este trio está a criar em conjunto e [de] como é que podemos explorar as nossas convergências e divergências de um modo interessante para nós – e para o público, espero eu.
YT Sim. O que eu achei bastante interessante neste processo foi verdadeiramente experimentação. Eu já tinha tocado com o Ricardo, o Ricardo e a Adriana já tinham tocado juntos, mas não achei que a coisa tivesse logo funcionado a primeira vez que tocámos. Surgiram coisas interessantes, que quisemos trabalhar, mas acho que foi mesmo pelo tempo que temos investido no projeto que as coisas se têm formado. Eu acho que, às vezes, há um certo perigo, quando as coisas funcionam logo.
DC Pode-se achar que funciona.
YT Pois. Muito rapidamente se chega a fórmulas e a fórmulas bastante, muitas vezes, fechadas. Este processo tem sido mesmo pela insistência e é bom quando isso acontece também, porque vão-se conhecendo cada vez mais quais são as fragilidades e sinto que vamos construindo também algo mais coeso e único, sem estar cristalizado e sem estar fechado também nessa fórmula que vamos encontrando.
DC Isso faz-me pensar também no sentido que este tipo de proposta pode ter. Se pensarmos na música, nas artes sonoras, em comparação com o que acontece com o teatro ou outras artes performativas, os artistas dessas áreas estão mais habituados a terem tempo, tempo para desenvolver uma proposta. Quando há financiamento, há financiamento para esse tempo de produção e, na música, não é tão assim. Muitas vezes, o que nós apresentamos num palco ou o que nós vamos ver numa sala é algo que já está a circular. Nunca é uma repetição, mas acho que se entende, nesse contexto, o que é que isto quer dizer. Não sei até que ponto outros músicos, outras músicas não estariam dispostas a abraçar um processo destes, se as condições existissem – de tempo. Ok, nós temos um concerto e é daqui a um ano, podemos trabalhar. Ao mesmo tempo, estar noutros projetos, não é só aquilo, mas esses tempos, esses intervalos de reflexão, de meditação, de integração: as coisas vão-se incorporando. Talvez possa fazer sentido falar de como é que vocês, desse lado de quem faz a música, como é que vocês sentem o panorama ao nível nacional, de como é que isso afeta as vossas ideias, as vossas possibilidades de criação. Eu já estou a dizer quase que estas possibilidades não existem tanto – encomendar, pedir a músicos que desenvolvam e que tenham em conta que o espaço onde vão apresentar o projeto não é só um espaço aberto à música que têm para tocar. Podem fazer uso de uma panóplia de outros elementos e recursos humanos, que ampliam o sentido da proposta.
YT Não sei se posso dar um passo atrás?
DC Isso, depois… Sim, claro que sim.
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YT Antes de responder a essa pergunta, das condições que são apresentadas, acho que também isso tem muito a ver com o tipo de música que é feito. No caso de nós os três, houve sempre uma componente forte da composição escrita. Na verdade, acho que nunca falámos sobre isso, mas, no último ensaio, pensei também: “Agora já temos três partituras e cada um está a traduzir a partitura do outro”. Até esse ponto, estivemos sempre a tocar muito numa lógica mais de improvisação, apesar de termos já uma direção muito estabelecida. Acho que nunca chegámos a falar [sobre] se isto ainda é improvisação, qual é a nossa posição em relação a isso. Só para tentar ligar ao que estavas a dizer. Há esse interesse da nossa parte. Já havia esse interesse em compor e isso pressupõe sempre um tempo, mas também estamos dentro de um meio em que a música experimental, o que quer que isso seja, também se confunde muito com música improvisada e, às vezes, não é improvisada, composição em tempo real. Neste caso em específico, acho que estamos um pouco entre as duas coisas. Na verdade, acontece sempre também na música que acabamos por chamar de não improvisada: há sempre uma interpretação do que está escrito. Mas, às vezes, esse tempo de que tu falas – como é que eu posso dizer isto? – aparentemente não é um problema, quando se fala de música improvisada. Acho que esse é que é o problema. Quando isso não é problematizado, pressupõe-se que não é preciso tempo. Antes de ir para a parte toda institucional, não haver apoios, às vezes, [a questão] é como é que os músicos pensam a música que fazem.
DC Por isso é que eu lancei a ideia (ou a pergunta ou a reflexão), porque estou entre o lado de quem faz música, mas, agora, também de quem a programa. Quantas vezes os músicos, as músicas, por quererem continuar a fazer aquilo que fazem, muitas vezes esses processos têm de ser muito, muito adaptados à proposta que é feita, no sentido em que, se só temos este tempo para ensaiar e para apresentar, então, é com esse tempo que vamos pensar essa proposta. Não sei se estou a ser clara?
YT Sim.
DC Portanto, esse sentido de adaptação, às vezes, é quase como se tomássemos por garantido que os músicos e as músicas, os artistas e as artistas tivessem que se adaptar a essas condições de tempo, que, às vezes, são pedaços que não dá para…
AS Sound checks. [risos]
DC [risos] São sound checks, é verdade.
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RJ Eu gostava só de dizer em relação ao que estavas a dizer: realmente cria as condições para se fazer um trabalho mais lento e de algum modo financiarmos esse tempo. Porque é muito isso que eu acho que falta. E falta perspetiva também sobre o que é que isso significa e, aí, acho que é mais ou menos geral. Em Portugal, conheço uma parte da realidade, mas tenho a ideia de que realmente as coisas da cultura são muito pouco valorizadas e especialmente áreas como aquela em que nós nos movemos. Acima de tudo, acho que uma das grandes questões das instituições ou dos teatros ou de qualquer instituição que programe é, por um lado, encontrar condições financeiras para dar aos músicos esse tempo e essa possibilidade de desenvolvimento do trabalho no tempo. Dar o tempo certo. Fazer um convite a um ano é raro, porque é sempre para o próximo mês ou é sempre para não sei quê. Isto na música e no meio onde nós nos movemos. Depois, há uma coisa muito importante, que é isso que eu vejo pouco, que é não estares à espera de um resultado. Não estares à espera de um determinado resultado. Ou quem programa ou quem convida não estar, à partida, à espera que aqueles músicos ou que aquele projeto tenha um determinado output ou que vá numa determinada direção, no sentido de se conseguir alcançar objetivos que, muitas vezes, estão muito para lá da música ou daquilo que é a criação musical e artística. Acho que isso é realmente uma diferença grande. É evidente que há sítios que têm capacidade para financiarem certos projetos, mas, muitas vezes, esperam um determinado resultado. Eu acho que, aqui, isso não aconteceu. Estas indefinições… Podes dizer que o rider não ficou fechado cinco meses antes. Eu sei que não dizes isso [risos], mas no sentido de não estar fechado cinco meses antes, quando tivemos um ano. Noutras áreas… Eu trabalho noutros contextos em que realmente essa perspetiva já está mais clara. Ou seja, não se está à espera de um determinado resultado, mas está-se à espera, sim, de criar condições para que aquele grupo de pessoas (ou aquela pessoa) consigam fazer um trabalho específico para aquele contexto e que não estejam constrangidos por questões que estão para lá daquilo que faz parte da sua criatividade e do processo criativo.
AS E, para reiterar esta questão, eu penso que, quando falamos em tempo, o tempo disponibilizado por uma instituição de programação, normalmente estamo-nos a referir ao tempo que as pessoas precisam para instalar um espetáculo já existente. Foi, penso eu, muito generoso da tua parte e da parte do TBA em geral ter-nos convidado a criar. Estamos a falar do tempo de criação versus – ou mais – tempo de montagem. Embora estas coisas estejam profundamente ligadas, também penso que se pode estabelecer uma distinção, uma diferença. Por exemplo, nós ensaiámos, temos um trabalho de ensaio, mas depois, no TBA, vamos precisar de vários dias, para trabalharmos o desenho de luz (não é só para o sound check, por mais que já tenhamos a partitura), para trabalharmos o set up do sistema de som, o set up dos instrumentos, etc., etc. Uma vez que isto envolve imenso equipamento e recursos humanos, naturalmente que estas decisões já as tomámos antes de lá chegar. Mas o facto de nos termos dedicado tanto (relembrando aquilo que o Yaw disse há pouco) a descobrir o que é que estamos a fazer e como é que isso pode florescer e pode ser explorado – e atenção, pudemos dedicar-nos tanto, porque houve condições financeiras, materiais para isso – permite-nos chegar lá já com um plano relativamente feito. Relativamente. [risos]
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DC Aí, também teríamos de falar do tempo que é dado à música relativamente a outras artes performativas no próprio espaço para montar e fazer acontecer, que acho que ainda não está também muito presente.
AS E, por exemplo, o desenho de luz. Nós temos uma partitura de música, mas não temos, ainda, a partitura de desenho de luz.
DC A minha vontade é também de alertar consciências, porque não podemos querer só que as coisas sejam feitas, queremos pensar em como integrar estes tempos no próprio espaço de apresentação. Para não nos alongarmos mais, eu vou voltar a agradecer por estarem aqui e por terem aceite este desafio. Eu lembro-me também que uma parte da resposta que dei, quando me perguntaram o porquê, [foi] “eu também quero ser surpreendida”. Isto vai de acordo com aquilo que disseste, Ricardo. Eu quero não saber tudo. Eu quero também ser um membro que está na audiência e que se deixa levar pela magia de coisas que desconhece. Há uma parte de mim que percebe a responsabilidade de dar um acompanhamento a um projeto. Acho que faz parte convidar, mas também querer acompanhar. Não querer fechar, querer acompanhar. Daí eu querer agradecer especialmente a maneira como vocês levaram a sério o meu trabalho, que ainda agora começou, ao darem o vosso feedback, ao receber os teus telefonemas, Adriana, sobre a excitação que estava no ar, ou os ensaios ou as gravações. Daí também eu sentir que este desafio está em boas mãos e que vai estar em boas mãos e em bons ouvidos. Quero convidar o nosso público a estar presente no dia 21 de novembro. Obrigado, mais uma vez.
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música
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Dito e Feito é o podcast do Teatro do Bairro Alto. A gravação é do Estúdio Fisga e a edição de Sara Morais. A música é de Raw Forest. Acompanhem o TBA nas redes sociais e em teatrodobairroalto.pt.