Saltar para conteudo
Visitar TBA
Anterior

Dito e Feito #05 Transcrição – David Marques

Texto

Se preferir, pode ouvir este podcast aqui

 

Este é o Dito e Feito, podcast do Teatro do Bairro Alto, em que falar é uma forma de fazer e vice-versa.

Eu chamo-me Francisco Frazão. Sou o diretor artístico do TBA. Este episódio é sobre um espetáculo que vamos apresentar nos próximos dias 1, 2 e 3 de novembro. Chama-se Mistério da Cultura e é criado pelo David Marques, que está aqui comigo. É um espetáculo de dança, que teve uma antestreia no festival Materiais Diversos. Tem agora a sua estreia em Lisboa e, aqui, trabalhas com algumas das pessoas com quem já trabalhaste numa peça anterior, mas também com pessoas com quem te cruzaste como intérprete.

 

00:00:46

David Marques Sim. A equipa de intérpretes é composta por sete pessoas: o Nuno Pinheiro, o Francisco Rolo, o Marco da Silva Ferreira, a Madeleine Fournier, a Teresa Silva e o Johann Nöhles. Depois, na luz, estou a colaborar com o Tiago Cadete; no som, com o Miguel Lucas Mendes; no espaço, com o Tiago Pinhal Costa; no vídeo, com o Diogo Brito; e, nos figurinos, com o Tiago Loureiro, que também era uma pessoa com quem eu já tinha trabalhado anteriormente. Pronto. É uma equipa de artistas relativamente novos, uns que eu conhecia bastante bem, outros não. Um dos intérpretes é ator. Pronto, é isso. É esta equipa.

Francisco Frazão Estavas a dizer, há bocadinho, antes de começarmos a gravar, que era engraçado estarmos aqui, num estúdio de gravação, porque a ideia da rádio era uma ideia que esteve presente na conceção do espetáculo desde o início.

DM Sim. Eu tenho uma relação bastante próxima, quase biograficamente, com a rádio, porque o meu pai fez rádio muito tempo – rádio amador e rádio profissional. Portanto, eu cresci a ver o meu pai a trabalhar na rádio. Eu próprio fiz rádio durante alguns anos em criança – fazia parte de uma pequena equipa que apresentava um programa infantil na rádio local de Torres Novas – e acho que, com o tempo, fui percebendo que essa herança – e essa memória, na verdade – se queria bastante infiltrar no meu trabalho. Eu já tinha sentido isso um bocadinho na Ressaca e pedi ao meu pai, na altura, para ele gravar uma espécie de títulos de capítulos, que eu achava que a peça tinha. Portanto, havia já uma pequena sugestão de uma voz radiofónica, que introduzia, apresentava capítulos da peça. Desta vez, achei que a peça seria, de facto, uma espécie de emissão de rádio. Por um lado, porque havia coisas que eu queria dizer e dizer com palavras e, como o meu instrumento principal é o corpo – e o corpo da dança é muitas vezes um bocadinho mudo, não é óbvio que ele fale –, parecia-me bastante interessante encontrar um dispositivo que fosse um pretexto para nós falarmos. E, no princípio, pareceu-me que a rádio era esse dispositivo. Não que fôssemos representar um programa de rádio, mas tentar perceber de que maneira é que, em cena, se podia criar uma relação com o som e com as palavras como na rádio. Também uma certa ideia de estrutura – eu pensei mesmo no programa. Depois, com o tempo, a rádio foi-se transformando noutras coisas e, hoje, eu acho que o que ficou da rádio na peça é mais uma espécie de uma ideia de transmissão e sintonização, mais do que da rádio em si. Mas há assim umas frequências estranhas na peça.

FF Esta ideia da fala é uma coisa que aparece só bastante tarde no espetáculo, só num momento bastante tardio. É um momento que lembra esta ideia da entrevista…

DM Exato.

FF … e em que os intérpretes dizem textos, que, entretanto, percebi que não são da sua autoria, ou seja, que partem de conversas que tu tiveste com eles, mas o que cada um diz não é o que foi dito por si. Portanto, as identidades misturam-se e é um bocadinho a partir desse material que nós vamos organizar este episódio, não é? Tu fizeste, durante o processo de criação do espetáculo, entrevistas com cada um dos intérpretes. Entrevistas pessoais, coisas que nem sequer eram para ser tornadas públicas. O que vamos mostrar, ouvir aqui, hoje, são excertos que tu escolheste dessas conversas e que não entram no espetáculo. É assim?

 

00:04:44

DM É sim. Muito ainda por causa dessa ideia da rádio, dessa vontade de criar uma emissão de rádio – e também porque, para mim, era importante na peça ir tentar descobrir ou revelar, conhecer dimensões dos intérpretes e da relação deles com a sua profissão que não fossem tão óbvias –, essas entrevistas também serviram para isso. Uma espécie de arqueologia que eu queria fazer com os intérpretes. Tentar perceber o que é que eles achavam de determinados assuntos e como é que eles se viam como artistas, etc. Há uma série de questões que, para mim, era importante dar-lhes luz ou dar-lhes espaço, para elas existirem no processo. Criei uma prática muito simples com cada intérprete, porque trabalhei individualmente com cada intérprete antes de juntar toda a gente em agosto, que foi quando começámos a trabalhar todos juntos. Criei uma prática muito simples de estúdio, que basicamente somos nós sentados, cada um dum lado, a uma mesa, de mãos dadas, de olhos fechados. Gravei as entrevistas. Era basicamente eu a fazer perguntas e a pedir-lhes para eles responderem a essas perguntas numa prática performativa muito simples.

FF– E fazias as mesmas perguntas a cada um ou…?

DM Não. Tinha uma espécie de um guião ou de uma estrutura, que seguia mais ou menos, começando por uma ideia mais do passado deles, da relação deles com a dança inicialmente. Um bocadinho para perceber o percurso deles, apesar de eu conhecer bastante bem a maior parte dos percursos deles, mas para perceber alguma coisa bastante mais biográfica. E, depois, avançávamos normalmente para questões relacionadas com a relação deles com a ideia de comunidade artística, da relação deles com o poder, com as instituições culturais, com espaços físicos dos teatros. E, depois, normalmente também lhes perguntava, mais para o final, coisas que tinham a ver com dimensões que eles achassem mais ocultas da profissão deles ou segredos de cena. Tentar encontrar uma espécie de… Desvendar qualquer coisa que eles próprios, às vezes, não têm… Nós próprios, como artistas, não temos muito tempo para falar sobre isso, mas há assim umas coisas que nós vamos descobrindo com a experiência, com o tempo. Coisas que são muito cómicas da profissão e que normalmente não se fala delas. Terminávamos normalmente com esse tipo de reflexões.

FF Nós decidimos dividir estes clipes em três blocos, digamos assim, em três atos. Neste primeiro ato, fala primeiro o Marco, depois a Madeleine, depois a Teresa e depois o Johann. Se calhar, só avisar que a Madeleine e o Johann falam em francês, os outros falam em português. O que é que achas que junta estes quatro momentos?

DM Eu acho que, exatamente como mais ou menos eu construí esses guiões para os entrevistar, este primeiro bloco tem mais a ver com essa relação deles com o passado deles e com a relação de alguma maneira também mais afetiva com a dança e com esse momento mais inicial de um primeiro desejo de querer dançar ou de querer ser artista. Um bocado o que é que isso também significa. Queria só dizer e lembrar que este material não foi de todo pensado para ser mostrado publicamente. Tão íntimo era o ambiente que nós próprios estávamos de olhos fechados enquanto estávamos a fazer esta entrevista. Portanto, é de facto um trabalho de pesquisa que tinha o único intuito de servir a própria peça de um ponto de vista processual.

FF Achas que quem está a ouvir também deve fechar os olhos, a menos que esteja a conduzir?

DM Acho que é uma excelente ideia, sim. Acho que é uma excelente ideia fechar os olhos.

FF Ok. Vamos, então, ouvir o Marco, a Madeleine, a Teresa e o Johann.

 

00:08:32

Marco da Silva Ferreira Acho que a memória mais antiga que eu tenho em que tive mesmo muito, muito prazer a dançar – e que eu acho que é a memória mais antiga, na realidade – é num aniversário de uma prima minha. Eu devia ter uns cinco, seis anos e, não sei porquê, estávamos com música e era uma coisa tipo música brasileira, assim uma coisa tipo ♪dançando lambada♪. [Lembro-me] de eu, ali, gostar muito de estar a dançar – e dançar particularmente com o meu pai – e de ter aquela coisa de ser levado através da dança, de rodar, de pegar, de me atirar. Senti mesmo que estava a dançar e que a dança tinha, ali, um sítio de felicidade e de relação com o outro. Neste caso, com uma pessoa mais velha, que eu tenho a ideia que era o meu pai, mas não tenho bem a certeza se era o meu tio. [Lembro-me] de eu gostar de relaxar o meu corpo e de ser seguro por alguém. Eu lembro-me disso. Lembro-me de estar muito feliz com aquela sensação. Foi curioso. Depois, a segunda memória que eu tenho com dança é uma péssima memória e que vem da altura do meu quinto ano, em que havia um género de um mini-Chuva de Estrelas na escola e eu decidi participar com a turma. “Vamos fazer qualquer coisa.” E decidimos fazer uma coreografia. [Lembro-me] de eu achar aquilo espetacular e de andar superenvolvido, mas, na realidade, [de] serem só raparigas a fazer e de começar a ser vítima de bullying por causa disso. [Lembro-me] de querer muito dançar, porque, na realidade, eu gostava de dançar e gostava de fazer aquilo, e de falar com a minha mãe a dizer que não percebia porque é que me estavam a tratar mal e, na escola, porque é que estavam a dizer aquilo. [Lembro-me] da contínua da escola dizer “Mas não faças, então. Os meninos não dançam” e de eu dizer isso à minha mãe e de ela, em vez de me dizer uma coisa do tipo “Não, mas deves fazer. Se gostas de dançar, deves dançar”, me dizer “Pronto, se calhar, não te podes colocar mesmo nesse sítio, que te magoam. Não faças.” [Lembro-me] de eu ter sentido que aquilo foi um género de um castrar. Eu acabei por não fazer, por ir ver, mas não dançar, mas senti que aquilo foi muito violento.

 

00:11:37

Madeleine Fournier Ainda assim, sinto uma afinidade com as pessoas que trabalham o corpo. Há qualquer coisa, ainda que não façamos a mesma coisa. Vejo-o simplesmente na postura, precisamente naquilo sobre que falávamos – a relação não com o psicológico, mas mais a matéria, a abstração. Reconheço-me nisso, sim. Talvez não em todos os bailarinos, mas, ainda assim, há qualquer coisa na prática da dança, no corpo, que nos une, acho eu. Seja como for, com que me identifico e de que gosto, que aprecio. Não me tinha dado muito conta, porque estava bastante com bailarinos e, agora que passo mais tempo com outro tipo de artistas, aprecio deveras. Gosto de bailarinos. Ainda que haja coisas um pouco… Somos hipersensíveis, somos híperpiegas… Mas sinto-me muito em casa com eles. Depois, é uma coisa entre nós, não se trata necessariamente de uma solidariedade. Não nos vamos verdadeiramente apoiar ou não sei quê, é mais a prática que nos une, uma ligação ao sensível, que é mais uma comunidade política. Ainda que estejamos possivelmente muito sozinhos no meio da dança. Na música, tenho a impressão de que há mais bandas, verdadeiras famílias que se apoiam. Algumas… Na dança, tenho uma família, mas mantemo-nos muito independentes uns dos outros. Ainda assim, sinto que há alianças mesmo fortes, mas com as pessoas que, na verdade, me inspiram. O Odile Duboc e o Loïc Touzé são de algum modo os dois que mais me influenciaram.

 

00:13:57

Teresa Silva A maneira de eu ver isso acho que é muito pelo feedback das outras pessoas. Quando eu faço um espetáculo e alguém vem dizer alguma coisa, aí eu sinto… Sei lá. O artista o que é que pode ser? Não sei. Pode ter um dom qualquer, ter qualquer coisa – não sei explicar – que faz os outros… Eu já senti isso, mas acho que é sempre muito por pessoas virem ter comigo e me agradecerem e dizerem que, de facto, há qualquer coisa em mim que… Isso tem a ver com a minha maneira de ser e, se calhar, como é que eu danço, como é que eu estou em palco, como é a minha presença. Acho que tem muito a ver com essas coisas, com a presença, que despoleta qualquer coisa que, para as pessoas, é surpreendente. Eu acho que é muito aí que eu sinto isso de, de alguma maneira, poder ser artista. Para mim, é difícil eu dizer-me que sou um artista, definir-me assim.

 

00:16:13

Johann Nöhles Quando digo dança é no passado.

DM Sim, compreendo.

JN E, ao mesmo tempo, o que é bizarro é que também nunca foi verdadeiramente o meu presente, porque nunca me senti um bailarino que dança. Mas creio que, ainda assim, dancei e danço. Nada mal. Mas é como se fosse sempre uma piada. Não necessariamente engraçada, mas é uma marca, é um jogo. Mas eu sou um pouco assim.

 

00:16:58

FF Este segundo bloco é um bloco mais de, digamos, coisas práticas. Esta ideia da relação com a produção, com o poder era uma preocupação que está obviamente no título do espetáculo [e] que, depois, passa um bocadinho se calhar só tangencialmente na peça. Inicialmente, tinhas a intenção [de] que isso estivesse de forma mais forte e, depois, foste abandonando isso? Como é que foi esse processo?

DM Inicialmente, eu pensei na peça como… Não é de todo que fosse um manifesto, mas havia, para mim, uma certa statement, para usar uma palavra que não é portuguesa, que teria a ver com uma espécie de reivindicação do mistério para os artistas e não em oposição às instituições, ao poder. Eu, durante algum tempo, pensei que a peça o que devia fazer era reivindicar a falta de transparência, a falta de clareza, uma certa ideia de mistério; reivindicar o nevoeiro para o artístico e reivindicá-lo às instituições, ao poder, àqueles que não são artistas, mas que trabalham na arte, com a criação artística. Sobretudo as instituições ou o poder parecem-nos um bocadinho fantasmagóricos desse ponto de vista: difíceis de alcançar, difíceis de comunicar com ou de entender exatamente como é que funcionam. E eu julgo que essa falta de clareza ou de definição faz sentido, de facto, estar do lado da criação, em vez de se exigir aos artistas continuamente e repetidamente que eles sejam muito claros na comunicação do seu trabalho – às vezes, até anos antes de começarem a criá-lo. Portanto, um bocadinho propor uma reversão ou pelo menos uma distribuição do mistério de maneira diferente. Interessava-me falar com eles, com os intérpretes, perceber como é que eles próprios se relacionam com a ideia do descanso, das férias, com a ideia do salário, de serem pagos. É muito fácil romantizar a profissão, romantizar o que é que é ser artista. É comum. Não raras vezes as pessoas dizem que eu tenho imensa sorte por ser artista, porque intuem que eu faço aquilo que quero e que há um enorme desejo que me faz querer ser artista e que isso é uma sorte poder concretizar. Mas é verdade que há uma dimensão da profissão – no meu caso, como coreógrafo e como bailarino – que é bastante prática, seja na relação com as instituições, a fazer uma candidatura, seja, por exemplo, na relação com a distribuição do meu tempo de trabalho. Eu preciso de ter férias e preciso de pensar esse tempo como qualquer outro profissional.

FF Claro. Temos aqui um primeiro momento em que o Nuno fala da relação com a ideia e com a prática do Ministério da Cultura, um momento em que o Francisco fala da tal ideia das férias, o Johann fala do problema de ser pago e a Madeleine fala sobre o trabalho de fazer produção e também, às vezes, aquela obrigação de falar com as pessoas com quem se acha que os artistas devem falar.

DM Exato. “Sermos funcionários de nós próprios” – ela até usa essa expressão.

FF Exato. Vamos, então, ouvir o Nuno, o Francisco, o Johann e a Madeleine. O Johann e a Madeleine, já avisámos, falam em francês.

 

00:20:49

Nuno Pinheiro Enquanto ideia, funciona bem. Acho que é um organismo importante, simbólico, democrático, necessário. Isto… a ideia. Falando na prática, não há grande relação. Eu imagino o Ministério… Isto é um bocado ridículo, mas eu imagino uma senhora a uma secretária, ainda que eu saiba que não é assim, mas é isso que me parece, com tudo o que é ridículo e pequeno nessa imagem.

 

00:21:41

Francisco Rolo Não, nunca aconteceu, porque, mesmo que eu passe, por exemplo, uma semana sem ter ensaios, sem fazer aulas de dança, uma das partes que me liga à dança, que é a atividade física, se eu passar a semana inteira a nadar, estou satisfeito. Eventualmente, vou começar a ressacar, sim, por querer trabalhar, querer ensaiar, querer fazer coisas.

DM Nunca sentiste necessidade…?

FR Nunca. Ou seja, essa necessidade de não querer fazer nunca aconteceu. Não. Em momentos em que o trabalho está a ser muito exaustivo, penso que preciso de umas férias, de um descanso, de uma pausa, de uns dias, mas é sempre por oposição a estar num momento muito cansativo. Nunca pensei, num momento em que estou, por exemplo, mais tranquilo, que não quero mais. Para já, ainda não aconteceu.

 

00:22:38

JN Para mim, é sempre um dilema ser pago. Sinto-me muito rapidamente em dívida. Portanto, quanto menos sujo me sinto, melhor o meu desempenho. Estou de algum modo em negação do dinheiro em relação a isso.

DM Não queres ser controlado por ninguém com o seu dinheiro?

JN Não é controlado, é só… Para mim, ser pago coloca-me em dívida.

DM Para com a pessoa que te paga?

JN Sim.

DM Tens de estar à altura do dinheiro?

JN Porque é muito difícil saber. Como sou pago por uma coisa que não é um produto, é muito difícil avaliar se o que eu trouxe vale essa contrapartida. Ainda assim, ultimamente, começo a estar descansado em relação a isso e a dizer-me que posso deixar de me colocar essa questão. Mas penso que isso tem a ver com o facto de não me sentir bailarino [e], por isso, sentir que o que eu trago é outra coisa, que não sei muito bem o que é e sobre a qual tenho cada vez mais controlo, mas ainda assim relativamente pouco. À parte isso, contribuo com movimento. Faço um trabalho de bailarino, mas, para mim, isso é de tal maneira um jogo de algum modo que… Não sei. Confundi-me um pouco.

 

00:24:59

MF É realmente outra energia. Não sou a mesma pessoa, quando faço isso. Exceto quando preparo a candidatura. É que, quando preparo a candidatura, quando a retoco, estou mesmo a ser artista. Sou mediadora de mim mesma, mas continuo a ser artista. Desenvolvo um pensamento sobre o projeto e tudo mais e isso faz-me avançar. É mesmo necessário que isso me faça avançar. Por outro lado, em tudo o que se prende com os e-mails, os subsídios e os pedidos de residências sou apenas secretária da minha própria associação. Além do mais, cada vez tenho menos vontade de pedir coisas às pessoas. É mesmo preciso ter energia para estabelecer contactos – e eu faço-o e tudo – e é porreiro, durante algum tempo, porque se conhecem pessoas porreiras e que se interessam pelo trabalho e tudo… Sou um pouco tímida nisso e, na verdade, gosto que isso passe pela peça. Na verdade, é por isso que gosto que as pessoas me venham ver depois do espetáculo, porque digo a mim mesma que há ali algo que pode transparecer. Pode-se falar a partir de qualquer coisa. Se é falar com as pessoas, para se dar a conhecer e tudo mais, não consigo.

 

 

00:26:27

FF E, agora, neste terceiro bloco, neste terceiro ato, distanciamo-nos outra vez das questões práticas e há um momento em que o Nuno fala de uma experiência forte como espectador, a Teresa fala da questão das influências, dos modelos e até de ser demasiado influenciada, por vezes, o Francisco fala e não fala de segredos da profissão e é um clipe que tem uma música de fundo muito alta – portanto, avisamos também para essa situação, que foste tu que provocaste…

DM Sim, sim.

FF E, finalmente, o Johann, numa espécie de zoom out, como acontece no final dos filmes, fala da circunstância de ele ser humano, de nós sermos humanos. Se calhar, também por causa desta questão do cinema, eu acho que há qualquer coisa no espetáculo que tem a ver com o ser um making of e estes excertos que estamos a ouvir são uma espécie de cenas cortadas, cenas que não entraram na montagem. Para além da rádio, a ideia do cinema foi alguma coisa que te interessou, até porque também usas vídeo no espetáculo?

DM Sim. Eu acho que a questão da rádio trazia com ela uma questão muito forte, que era a da visão. Ou seja, a rádio é este médium que não usa imagem. Pelo menos, a imagem visual, de facto. Como eu queria fazer um espetáculo e o espetáculo tem essa dimensão, trazer a rádio ia-me criar um problema imediatamente, que era: então, o que é que se vê? Eu fiz um espetáculo com o Tiago Cadete, que era o Apagão, em que não se via, de facto, nada. Só se ouvia[m] e sentiam coisas. Aqui, eu não queria voltar a fazer isso. A ideia era dar a ouvir, mas também dar a ver e, portanto, essa questão de o que é que se vê, que imagem é esta do espetáculo, que me ocupou desde o princípio da criação da peça. Havia essa vontade também de dissociar imagens do seu som, ainda inicialmente, quando eu pensei em fazer sobretudo uma emissão de rádio. Rapidamente eu percebi que poderia tratar essa questão da imagem com imagem projetada em vídeo. Portanto, na peça, há imagens dos ensaios da peça que são projetadas. Umas que são feitas, outras que são verdadeiras, no sentido em que umas nós criámo-las, encenámo-las, outras não. Um bocadinho influenciado por um filme do Jacques Rivette, que é o Out 1, em que ele faz uma espécie de um documentário fictício sobre uma companhia de teatro que encena o espetáculo. A peça tem essa dimensão também muito clara da imagem através deste documentário. Documentário? Eu chamo-lhe documentário, enfim.

FF Sim. Essa ideia também de misturar materiais de origens diferentes. O filme do Rivette também tem isso, não tem? Tem o ensaio. Depois, tem a ficção.

DM Exato.

FF É curioso, por acaso, falares do Rivette, porque, quando se fala do Rivette, fala-se muito da ideia da conspiração e, nesse filme, há, de facto, ali, toda uma série de conspirações, que nunca se chega bem a perceber, sobre um grupo de pessoas poderosas, que controlam os destinos da França – e do mundo, aparentemente. Mas tu usaste a conspiração como um método de trabalho. Esses encontros individuais com cada um dos intérpretes foi uma escolha deliberada, foi um mistério que tu produziste deliberadamente.

 

00:30:23

DM Foi, sim. Por um lado, porque poder trabalhar com cada intérprete individualmente, antes de juntar toda a gente, me permitia, mesmo em termos dos meios, ensaiar mais tempo. Eu não precisava de trazer seis pessoas a Lisboa, para ensaiarem comigo. Eu podia chamar apenas uma pessoa ou ir ter com um dos intérpretes e trabalhar. Para mim, o tempo de trabalho da peça foi bastante maior do que foi para cada um deles, porque eu pude trabalhar individualmente com cada um. Portanto, resolvi essa questão dos meios, por um lado, e, por outro, criava aquilo que eu achei que era importante para a peça, que era uma espécie de um puzzle, em que cada intérprete tivesse uma certa quantidade de informação, para depois os juntar e perceber como é que esse puzzle se podia construir. Eu sinto que essa conspiração, que eu tentei criar de uma maneira um bocadinho – falta-me a palavra – pretensiosa, me engoliu completamente. Eu percebi, quando juntei toda a gente, que havia outra peça que eu estava a começar ali, naquele momento, e que essa relação com o desconhecido se infiltrou de tal maneira no processo que houve um momento, no processo, em que houve uma tensão entre mim e um intérprete e os outros intérpretes todos acharam que aquilo era encenado e não era. É engraçado. Para mim, foi, na verdade, uma grande lição sobre onde é que eu me quero meter, se estiver a trabalhar sobre essas ideias da conspiração, das misturas da ficção com a realidade. Eu tentei criar isso, mas fui completamente engolido. Acho eu. Pelo menos, eu quero acreditar nesta interpretação [de] que o processo tomou conta de facto.

FF Ok. Vamos, então, ouvir o Nuno, a Teresa, o Francisco e o Johann.

 

00:32:28

DM Qual foi a experiência mais forte que tu tiveste como espectador?

NP Já tive várias. Eu não consigo escolher uma que seja mais forte.

DM Mas, então, diz-me uma muito forte.

NP De teatro?

DM Não. Como espectador do que quer que seja.

NP Tu queres que eu te diga qual é que foi?

DM Pois.

NP Ontem, tive uma muito forte. Por exemplo.

DM Porquê?

NP Porque há algum tempo que eu não tinha uma identificação tão pessoal com aquilo que estava a ver. Aquilo não era de todo sobre mim nem sobre a minha história, mas gritou-me a minha história. É uma coisa engraçada. Um certo lado da minha identidade.

DM Isso manifestou-se como? Ficaste muito emocionado?

NP Emocionei-me, arrepiei-me, que é uma coisa que eu tenho muito com música e tenho pouco com teatro ou com dança. Arrepiar-me mesmo, ter arrepios. Uma boa experiência. Também já tive más experiências. Aliás, nós estupidamente guardamos melhor as más experiências do que as boas experiências.

DM Pois.

 

00:34:48

TS Eu acho que tenho pessoas que me inspiram, sim. Vou dizer isto, mas não sei se está muito pensado, mas acho que até, às vezes, [inspiram] demais.

DM Demais?

TS Não sei muito bem ainda como falar sobre isto nem como pensar isto. Por um lado, eu sinto que tenho muitas inspirações e que isso me enforma e me desenha também. Ao mesmo tempo, eu sinto que preciso de vir para mim mais e perceber… Sinto que estou muitas vezes a trabalhar e a fazer estas coisas e estou poucas vezes focada em mim, nas minhas sensações, nos meus pensamentos, naquilo que me anima. Mas, depois, reenvia-me outra vez para este fora, porque, muitas vezes, aquilo que me anima, o que está aqui, são coisas exteriores, são pessoas, são isto: peças. Se calhar, eu também acho que é impossível não ter modelos.

DM Pois. Claro.

TS Eu acho que há sempre.

 

00:36:30

DM Conta-me lá uma anedota.

FR Mas assim um segredo… Não sei se existem assim segredos. Há muitos segredos, mas, por exemplo, eu querendo dizer um segredo associado a esta profissão, estaria a assumir que alguma coisa é obscura para as pessoas, para alguém.

 

00:37:10

JN Ainda assim, fico muitas vezes chocado com isso, com o facto de ser humano. Para mim, não dá para acreditar e, no entanto, a física, a matéria está muito presente. É difícil dizer que não existe. Não sei. E, no entanto, cada vez mais parece que não interessa. Enfim, é uma piada. Uma piada.

 

00:38:11

Dito e Feito é um podcast do Teatro do Bairro Alto. A gravação é do Estúdio Fisga e a edição é da Sara Morais com música da Raw Forest. Acompanhem o TBA nas redes sociais e em teatrodobairroalto.pt e venham ver o Mistério da Cultura nos dias 1, 2 e 3 de novembro.

 

 

Este teatro tem esta newsletter
Fechar Pesquisa