Ritmos de Xperança
Mynda’Guevara
Vinda do bairro da Cova da Moura em Lisboa, Mynda’Guevara carrega no nome e na atitude uma sede de revolução que está intimamente ligada ao papel ainda muito minimizado das mulheres no rap. O seu Rap, em crioulo, como forma de expressão verdadeira e emancipatória, tem vindo a conquistar uma posição de respeito, por força de uma lírica em reflexo do seu papel enquanto mulher, afro-descendente e rapper no seio de uma sociedade estratificada.
DJ Firmeza é um mago a tocar a sua música ao vivo no domínio de enredos percussivos de uma outra dimensão, do mais pronto a conduzir uma pista de dança rumo ao transe comunal que sem esforço o seu âmago espiritual convoca. Nascido em Portugal de ascendência angolana e carismático residente no bairro da Quinta do Mocho, Fifaz destacou-se como uma presença regular no circuito apelidado da Noite Africana na Grande Lisboa e nas festas mensais Noite Príncipe no Musicbox.
Cofundador da crew Piquenos DJs do Guetto, viu editado o EP em vinil B.N.M. / P.D.D.G. na Príncipe no final de 2013, que recebeu atenção elogiosa da crítica musical nacional e internacional. Em 2015, saiu o seu mui aguardado EP Alma do meu pai em nome próprio na Príncipe, um autêntico caso de clássico instantâneo, tamanha vida e realidade revelada em ritmos & sons. Há dois anos chegou finalmente o sucessor Ardeu, novo avanço entusiasmante, incluindo fogosas animações vocais num par de temas, na sua expressão afro technómica crua e minimal.
Desde 2014 tem tocado regularmente pelo Velho Continente, com atuações épicas veraneias no terraço do Schinkel Pavillon em Berlim, num pavilhão geodésico num bosque na Suíça ou numa festa no Pavilhão da Alemanha na Bienal de Arquitetura de Veneza, para além de festivais como o Lowlands na Holanda ou RBMA Festival em Los Angeles, e digressões nos Estados Unidos, Canadá, México, China e Coreia do Sul.
No final de 2017 viu estreado online o filme Pai Nosso, uma curta ficção – ensaio a partir da sua vida quotidiana realizada pelo nova-iorquino Clayton Vomero, e mais recentemente contribuiu com música para a campanha The World Isn’t Everything para a colecção SS2020 da marca Telfar.
João Grilo é um pianista e compositor, que desenvolve trabalho em vários géneros musicais, influenciado pela música clássica contemporânea, o jazz e a música eletrónica. Para além disso mantém uma atividade que relaciona a música com as outras artes, tendo cocriado a sonoplastia da peça de dança Coexistimos de Inês Campos, Fios de Terra com a companhia DEMO e tendo trabalhado no seu mais recente projecto HVIT com o videasta Miguel C. Tavares. Está a tornar-se um músico cada vez mais ativo na cena musical portuguesa e colabora com artistas nacionais e internacionais como Christian Meaas Svendsen, Demian Cabaud, Pedro Melo Alves, João Hasselberg, Jo David Meyer, Quarteto Contratempus.
Lançou dois álbuns de composições originais, Como se chama o teu disco? (2016) e HVIT, 2019, com o carimbo Porta-Jazz. Participou como intérprete noutros álbuns como Aparicion, de Demian Cabaud, More Fun Please, Pal Nilson Love, e Voa a Pé de Retimbrar.
Um dia sonhou que brilhava da barriga. Na noite anterior, tinha visto um documentário sobre bioluminescência e desde então que é inteiramente apaixonado por esse fenómeno.
Estamos já no início do mês de maio e quis o destino que fosse a esperança o principal argumento para o concerto inaugural de 2021 no TBA.
Mynda’Guevara, Dj Firmeza e João Grilo juntam-se pela primeira vez para a criação de um concerto que se prevê heterogéneo e festivo (e com um título que traduz isso mesmo: Ritmos de Xperança). No meio do primeiro dia de ensaio, tivemos uma conversa descontraída sobre a música como forma de libertação, a indeterminação das respostas que o tempo nos dá e sobre a urgência da esperança nos tempos que correm.
Yaw Tembe, programador de música do TBA – Porquê Ritmos de Xperança?
Mynda’Guevara – Devido aos tempos que estamos a viver, chegámos ao consenso que faria todo o sentido chamarmos o projeto de Ritmos de Xperança. As melodias e os ritmos que vamos apresentar têm muito que ver com as pessoas se desligarem do que está a acontecer e focarem no que estão a ouvir.
Apesar de a comunicação ser feita, maioritariamente, pelas redes sociais, temos colaborado bem. Quando há vontade, faz-se acontecer. A partir do momento que temos uma boa comunicação e estamos em sintonia, tudo o resto flui naturalmente.
YT – Como descrevem a influência que a cidade onde cresceram têm na vossa música?
MG – Obviamente que cada um, na sua individualidade, tem a sua essência, que tem muito que ver com o sítio onde crescemos, as pessoas com quem convivemos, a nossa rotina. O facto de trabalharmos juntos, mesmo que vindos de sítios de diferentes, dá-nos uma só essência, e temos como objetivo transpor isso no concerto. Queremos que as pessoas sintam que nos apresentamos com um objetivo só: estamos os 3 com a mesma essência, com a mesma vontade de nos interligarmos através da nossa arte.
João Grilo – É como a Mynda disse, mais do que sentir que o Porto influencia a minha música, o que me influencia é que no Porto estão lá a minha avó e o meu avô, que são as pessoas com quem cresci e com quem mantenho relações. É mais do que uma relação estética. O Porto tem muitos músicos diferentes e muitas coisas a acontecer, e porque atualmente as tuas referências são uma coisa mundial, porque tens acesso a montes de cenas e tens estes encontros inesperados. Agora estou a conhecer a Mynda, e de repente conheço montes de música que não conheceria noutro contexto.
Dj Firmeza – Acho que não estaria a fazer a música que faço se estivesse numa outra cidade. Essa é a nossa infância, fomos criados nos bairros suburbanos de Lisboa, e conhecermos a realidade dos nossos pais, a música que eles ouviam, as nossas vivências…
MG – …a rotina, a educação, o ambiente em casa, tudo influencia.
DF – Mas o mundo está sempre a inovar, estamos sempre a aprender todos os dias. O que passou, passou, foi bonito, mas o mundo é para frente …há certas coisas que respondo, mas nem sei se daqui a dois dias a resposta vai ser diferente.
YT – A tua música tem te levado para diferentes sítios do mundo. Como é que tens assimilado essa experiência?
DF – Tem sido uma experiência muito brilhante, depois vai dar tudo à mesma coisa, vais sempre aprender coisas novas, escutas histórias novas, realidades diferentes, géneros novo. No fundo, o que estou é ligado à música, seja rap, rock, reggae, punk, e isso abre muitas janelas. Há certas perguntas que só dá responder com tempo, um dia mais tarde. Só quando a história fechar o ciclo é que vais ter a resposta concreta. A música que mais me influencia é o Kuduru, foi criado nos anos 1990, como legado dos nossos pais, da guerra, cantavam as frustrações, é um desabafo.
YT – Mynda, como escolhes a língua em que vais escrever?
MG – Não bato muito crânio se vou escrever em português ou criolo. Tem muito que ver com o que a melodia me transmite e em que circunstância escrevo a música. Se estiver mais chateada vou escrever em criolo, se estiver mais moderada pode sair em português ou criolo. Eu sinto muito mais o criolo, o peso das palavras é diferente, é mais bruto, e mais sentido.
YT – E tens tido uma presença importante no rap nacional onde tens assumido uma certa militância dando voz ao rap em feminino, não só através das tuas letras, mas desenvolvendo também colaborações com outras MCs.
MG – Podemos ser uma minoria, mas não somos menos em termos de qualidade, sinto que tenho feito a diferença no hip hop. Por sermos uma minoria temos de trabalhar mais para alcançarmos o que queremos.
YT – Mesmo assim tens vídeos com centenas de milhares de visualizações no YouTube. Como vês essa relação com as redes sociais?
MG – Sinto que há muito retorno, não me foco muito no dinheiro, apesar de isso fazer parte. A melhor coisa que retiro da minha música é a relação que tenho com o meu público. São as mensagens que recebo, é o love que recebo quando lanço uma música. Sempre senti a preocupação das pessoas em seguirem o meu percurso, e acho que isso é bué importante.
YT – João, tens o teu projeto HVIT, já colaboraste com Paal Nilssen-Love, Retimbrar, Demian Cabaud, e ainda participas num projeto de dança com a Inês Campos (que vai passar pelo TBA em junho), há algo que assumes como sendo teu que atravesse todos esses projetos?
JG – Primeiro, o que os une é o facto de eu estar lá. Essas colaborações são com malta que quer dizer alguma coisa, têm uma urgência em dizer. Mas o que me interessa, às tantas, não é o lugar onde as coisas vão dar, é mais a necessidade que há por detrás disso. Mas eu também sempre fui de querer fazer montes de cenas diferentes. Não sinto que seja apenas um pianista ou músico disto ou daquilo. Sinto que tenho coisas para dizer, às vezes é com o piano, outras vezes é numa colaboração com alguém que dança, vai variando.
YT – O jazz dá-te o espaço para manifestares a tua curiosidade?
JG – Há muitas maneiras de ver o que é o jazz, e há muitas conceções diferentes. Para mim, é realmente um estilo que pode ir a todos os outros, é promíscuo porque por detrás de tudo tem algo que é muito mais importante que o estilo, que é um grito de revolta, quase um desabafo, como estava a dizer o Firmeza. Evidentemente, surgiu daí como canção de protesto. Entretanto mudou muito e ficou gigante e pode ir a vários sítios, mas acho que pode continuar-se a chamar de jazz. Se tiver uma coisa na sua base, tem de ser uma luta pela liberdade.