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04 Dezembro
Nuno Leão, Mariana Pinho & Ricardo Noronha

Mark Fisher: O espectro de um mundo que podia ser livre

Inscrições encerradas
Discurso
Mark Fisher

04 Dezembro

4 dezembro
sábado 16h

Discurso
Mark Fisher
Preço Entrada livre (sujeita à lotação) mediante inscrição prévia até 31 novembro para bilheteira@teatrodobairroalto.pt
Sala Manuela Porto
Duração 2h

Apoio: IHC, FCSH. O IHC é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Imagem: Bruno Caracol

Alerta! Na sequência das novas medidas de combate à Covid-19, o acesso aos eventos do TBA a partir de 1 dezembro 2021 passa a estar condicionado à apresentação de um dos seguintes comprovativos:

• Certificado Digital Covid da EU nas modalidades de Vacinação completa, ou de Testagem com resultado negativo (antigénio nas últimas 48h ou PCR nas últimas 72h) ou de Recuperação (há mais de 11 dias e menos de 180 dias).
• Comprovativo de Vacinação completa (Janssen, AstraZeneca, Moderna ou Pfizer) ou de Recuperação emitidos por países terceiros.
• Comprovativo laboratorial de testagem negativa ao SARS-CoV-2 (antigénio nas últimas 48h ou PCR nas últimas 72h).

Não são admitidos autotestes.

Crianças até 12 anos estão dispensadas de apresentação de certificado. Crianças a partir dos 12 anos estão sujeitas às mesmas regras dos adultos.

 

Condições de acesso
• Haverá medição de temperatura sem registo à entrada do espaço. É obrigatório o uso de máscara dentro do edifício antes, durante e depois das sessões
• Desinfete as mãos e adote as medidas de etiqueta respiratória
• Mantenha a distância de segurança e evite o aglomerar de pessoas
• Traga o seu bilhete de casa ou, caso tenha mesmo de comprar o bilhete no TBA, escolha o pagamento contactless por cartão de débito ou MBway.
• Coloque as máscaras e luvas descartáveis nos caixotes de lixo indicados
• Nas entradas e saídas, siga as recomendações da equipa do TBA
• Não é possível alterar o seu lugar após indicação do mesmo pela Frente de Sala.

Nuno Leão estuda Filosofia e é tradutor.

Ricardo Noronha é investigador do Instituto de História Contemporânea (NOVA FCSH). Os seus tópicos de investigação incluem a conflituosidade social, o pensamento crítico e as transformações da economia política durante a segunda metade do Século XX. É autor de «A banca ao serviço do povo». Política e Economia durante o PREC (1974-75 (Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2018) e coeditor de Greves e conflitos sociais em Portugal no século XX (Lisboa: Colibri, 2012).

Alienated and loving it

 

Conversa/Entrevista/Diálogo/Troca Epistolar sobre Mark Fisher e o seu Acid Communism

 

Filipe Felizardo: Ontem estava no autocarro a ler sobre Lev Vygotsky, psicólogo e pedagogo soviético. Deparei-me com uma passagem aludindo ao carácter abrangente e não linear da filosofia soviética do seu tempo, da qual se diz que não apenas deixara claro “o que de Spinoza e Hegel podia ser adoptado para o projecto revolucionário”, mas sobretudo – e é isto que me chama a atenção –  que “em vez de criticar a sociedade capitalista, questionava o que devia a sociedade fazer após a revolução”. Estamos a falar de um projecto filosófico (o de Vygotsky) que, do período de maturação até ao pleno desenvolvimento, cobre precisamente os poucos anos que precedem e sucedem a revolução de 1917, e é a forma como Vygotsky faz livre uso da imaginação que não deixa de me maravilhar, fazendo-me pensar numa proposta, em certa medida, psicadélica – com as suas pesquisas em psicologia da arte a poderem ser vistas como um “free your mind and the rest will follow” do seu contexto específico, não obstante as normas e restrições que qualquer projecto socialista pressupõe e determina. Por outras palavras: encontro similaridades entre os métodos desta psico-socio-futurologia soviética e a proposta de Mark Fisher esboçada no texto postumamente publicado que seria a introdução do livro que escrevia antes do seu suicídio, Acid Communism.

Nuno Leão: Na Rússia dos anos que precedem e que se seguem a 1917 estão em curso toda uma série de aventuras culturais interessantes e empolgantes – do cosmismo aos futuristas, do cinema à poesia de Mayakovski, aos formalistas, ao construtivismo e ao Proletkult, etc. É um contexto complexo e variado, aquele que rodeia a revolução que deu o comunismo a conhecer ao mundo, com o encontro entre a vanguarda política (ou militar) e a vanguarda artística-cultural, o horizonte utópico que todas estas experiências partilham e sob o qual se desenrolam. Franco “Bifo” Berardi – em Dopo il futuro (2011) – fala de um século “que acreditava no futuro”, que teria começado precisamente com os futuristas (italianos e russos) e terminado com o famoso (ou infame) “no future” do punk. Hoje, segundo Berardi, nada restaria dessa confiança depositada numa ideia de “futuro” que cada vez mais nos aparece como a “grande narrativa” por excelência, aquela que continha em si a possibilidade de todas as (outras) grandes narrativas. Seja por referência aos horrores do comunismo de Estado, às guerras e indignidades do fascismo e do nazismo, ou simplesmente quando consideramos a estupidez obstinada de todos os “contos de fadas do eterno crescimento económico”, para usar a expressão de Greta Thunberg na cimeira climática da ONU em 2019 – cada um encontra as suas (boas, excelentes) razões para ter deixado de acreditar no futuro. Mas por outro lado, e posto isto, como não acrescentar um ponto de interrogação a seguir ao título do livro de Berardi? Como não insistir e perguntar: e depois? E depois do futuro?

Aproximadamente pela mesma altura da publicação do livro de Berardi (2008, 2011), e numa galáxia não tão distante assim (cujo nome é Web 2.0), Mark Fisher e amigos iniciam, desenterram, “inventam retrospetivamente” o debate em torno daquilo que veio a ser conhecido por “aceleracionismo”. Numa entrevista de 2015, Robin Mackay, coeditor de Accelerate Reader, oferecia de passagem uma definição mínima: na sua base, diz, o aceleracionismo “é apenas o reclamar daquela ambição e visão que a política [dita] progressista possuiu um dia”. Por outras palavras, reclamar ainda (ou de novo) a modernidade, o futuro… “Transformar o mundo” é uma fórmula que também ocorre. Claro, daqui ao projeto psicadélico-aceleracionista de Acid communism vai ainda outro salto. Se olharmos para o texto que foi efectivamente escrito – a introdução ao livro que não chegou a existir cujo título seria Acid Communism – aquilo que Fisher nos apresenta é uma proposta genealógica: uma que promete traçar, ou começa a percorrer os caminhos de uma certa “esquerda antiautoritária” cujo projeto se esboçou pela primeira vez (ou começou a tornar-se “consciente”) durante o período que o texto foca, dos anos 1960/1970. A tese principal de Fisher é que o projeto neoliberal se explica antes de tudo pela necessidade de exorcizar – de “destruir, ao ponto de as tornar impensáveis” – todas essas experiências em “socialismo democrático ou comunismo libertário que floresciam pelo final dos anos sessenta, início dos anos setenta”. Socialismo democrático ou comunismo libertário é uma disjunção inclusiva, não representa nenhum tipo de problema ou enigma por resolver. A não ser, claro, no âmbito da praxis, da experimentação. E é igualmente desta maneira, parece-me, que devemos pensar a relação entre anti- e pós-capitalismo que está em jogo no início do texto, como uma disjunção inclusiva: é certamente sugerida uma inversão de “ênfase” ou foco, mas uma perspectiva não exclui necessariamente a outra. Como poderia o pós-capitalismo excluir o anticapitalismo, a partir do momento em que se diz que o capitalismo se propõe como objetivo “bloquear” ou obstruir o pleno desenvolvimento da nossa vocação para produzir, cuidar, criar coletivamente as nossas vidas? Pós-capitalismo não significa “mais” capitalismo nem “uma forma diferente de capitalismo”, como pretendem alguns – porque isso é aliás o que já significa desde sempre o capitalismo. Pós-capitalismo significa estar atento, concentrar esforços para focar a nossa atenção naquilo que “emerge”, na mudança que pode efectivamente ocorrer com ou sem o capitalismo. “Change is coming, whether you like it or not”, dizia Greta Thunberg. É também por aqui que faz todo o sentido pensar nos futuristas e construtivistas russos, que pertenciam a um momento muito específico – curto, é certo – em que a aventura Soviética ainda não tinha acabado de se fechar completamente sobre si mesma e sob o dogma autoritário do comunismo de Estado.

FF: Chama-me a atenção que designes o método de Fisher neste texto como genealogia. Num ensaio intitulado Dialectics Between Suspicion and Trust, Ray Brassier distingue genealogia e história como métodos de elaboração de inteligibilidade, opondo, portanto, Nietzsche, Foucault, e Jameson a Hegel e, tangencialmente, ao Marxismo. A primeira, ou seja, a genealogia, afigura-se como narrativa da suspeição, enquanto a última, isto é, a história, navega ou estrutura o espaço das razões. Brassier avisa que nenhuma se sustenta sozinha como ciência para o pensamento emancipatório, sendo fulcral que ambas se critiquem e constituam reciprocamente. Caso contrário, a genealogia afunila a perceção em loops de probabilidade e “incriminação”, enquanto a história se cristaliza numa narrativa única. Fisher não era alheio a esta dialéctica, propondo-a como motor da solidariedade. Nesta época em que o desespero e o descontentamento convidam a que se recorra tanto a explicações apofénicas e conspirativas como a abstenções atávicas e fascizantes disfarçadas de liberdade de pensamento – de certo modo em paralelo com a paranoia da Guerra Fria –, como é que uma consciência colectiva se pode equipar para não se cancelar a si mesma numa bad trip?

N.L.: Respondo imediatamente: se não queremos que a consciência, colectiva ou individual, se cancele a si mesma numa bad trip a primeira coisa que temos a fazer é não assumir como certo que o desespero e o descontentamento são condições intransponíveis da época em que vivemos. De resto, não conheço bem o Ray Brassier nem o contexto das análises que referes, mas lembraria que o momento muito concreto da nossa história recente em que a genealogia começou a afunilar a sua inteligibilidade em loops de interpretação-reinterpretação sem fim (nem exterior) à vista – tornando-se naquele curioso desporto de inverno praticado furiosamente na academia que tão bem conhecemos – é o mesmo em que a história se auto-cancelou naquilo que Mark Fisher chamou realismo capitalista. E que as duas coisas estão interligadas, ou não fosse o pós-modernismo “a lógica cultural do capitalismo tardio” (como demonstraram as análises de Fredric Jameson).

 

A tua questão fez-me também pensar num post do K-Punk de 2008 (com o título “Espectros do aceleracionismo”) onde, respondendo a questões levantadas por Alex Williams, Fisher refere o paradoxo constitutivo de um “hauntological moment” que faz com que “a única coisa que resiste ao modo nostálgico se assemelhe a uma nostalgia pelo modernismo”. Claro que a palavra que Fisher usa aqui é hauntology e não “genealogia”, mas seja como for: podemos mesmo dizer que já ultrapassámos esse “momento”? Ainda nesse post, em resposta à questão de Alex Williams sobre o “correlato político” da hauntology – a “sua associação com um esquerdismo derrotado (e derrotista)” –, Fisher perguntava de volta a Williams virando o jogo: e “qual é neste momento o equivalente cultural do aceleracionismo?”

FF: Nos mesmos anos 1960 que, com Fisher, interrogamos agora, Louis Althusser erigia-se contra o humanismo que permeava o pensamento comunista tentando-se lavar da era de Estaline. Defendendo a sua leitura de Hegel de que a História é um processo sem sujeito, o anti-humanismo (anticatólico e antireformista) de Althusser arriscou ficar empatado num idílio da Razão; porém, se se sustém que a operacionalidade do humano é a negatividade crítica que faz o colectivo “estranhar-se” a si mesmo, a razão re-emerge como princípio de autocorrecção.

À luz do potencial emancipatório das tecnologias de/para a alienação de totalidades subjetivas como “classe, género e raça”, é hoje a visão anti-humanista, além-do-universal, útil para o projecto que discutimos?

N.L.: Não apenas útil, diria que é uma reflexão essencial que está presente de muitas formas no projecto de que falaos. Realismo Capitalista, por exemplo, é provavelmente uma obra bem mais althusseriana do que normalmente se dá a entender. Ou não será esta a premissa fundamental na base de boa parte das suas análises: não humanizar o Capital? Isto é, evitando cair numa das suas principais armadilhas ideológicas, que é a sua habilidade para nos manter focados na actuação dos seus “servos” humanos, absorvidos na análise e contestação dos seus motivos, tudo isto enquanto a “estrutura impessoal hiperabstata” que realmente governa permanece impensada e inatacada? Por outro lado, é claro que o “anti-humanismo” de Fisher tem ainda outras fontes e convoca outras imagens, tons, e até mesmo sons, marcando todo o seu percurso antes e depois de Realismo Capitalista.

Ou se quisermos tratar a questão de um modo mais abrangente, é todo o aceleracionismo que é inequivocamente um anti-humanismo. Começando pela referência óbvia às extraordinárias teorias-ficções de Nick Land dos anos 90, que nos descrevem um Capital plenamente desterritorializado desmantelando peça por peça o velho e desajustado “Sistema de Segurança Humano” a partir de um futuro pós-apocalíptico, Terminator style, autoproduzindo-se e replicando-se em redes de circuitos ciberpositivos até ao consumar do “anti-climático desfecho da história humana”. Aceleracionismo enquanto anti-humanismo inorgânico; o Capital a descoberto enquanto implacável, voraz pulsão de morte… Mas não podemos e não devemos esquecer os textos originais nos quais se baseiam as remixagens de Land: a Economia Libidinal de Lyotard, o texto aceleracionista por excelência, com as suas passagens infames (ou nitzscheanas) a celebrar o desejo do Capital nos operários ingleses das minas do século XIX, com o seu Marx libidinal concebido como um “estranho arranjo bissexuado” (a jovem idealista que sonha derrubar o reino do Capital e instaurar o comunismo / o velho advogado encarregado de “construir o caso” contra o Capital mas que difere constantemente o fim dos seus estudos enquanto se vai deixando seduzir pelo Monstro); e claro, os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari. Em Anti-Édipo, Deleuze e Guattari concebem o capitalismo como “uma espécie de sinistra potencialidade que assombrava todos os sistemas sociais anteriores” e o Capital torna-se a Coisa inominável, a abominação que as sociedades primitivas e feudais “evitavam por antecipação”. Na verdade, como escreverá Lyotard alguns anos mais tarde, “não existem sociedades primitivas”: em lado nenhum encontraremos um referente exterior, puro, em nome do qual julgar a “alienação” ou a artificialidade que o capitalismo impõe como regra quando efectivamente chega, em lado nenhum uma “natureza humana” à qual regressar ou por qual se regular. Alienated and loving it.

E como é que tudo isto reaparece, porque é evidente que reaparece, em Acid communism (o texto)? Pegando apenas num trecho que me parece especialmente significativo: temos Foucault e a desnaturalização dos sistemas simbólicos que regem a realidade humana (a passagem de Borges citada no início das Palavras e as Coisas), temos aquele maravilhoso “riso psicadélico”, provocado por uma Alice quase-catatónica, expondo toda “a bizarria e inconsistência daquilo que foi tomado como senso comum”… E este riso “que ressoa do exterior” (do exterior do humano, entenda-se) – e que define tão bem senão toda, pelo menos uma parte importante de qualquer experiência com ácidos – seria ainda o mesmo, segundo Fisher, que “percorre todo o trabalho de Foucault” desde a sua magistral História da Loucura no início dos anos 1960 até aos estudos sobre a História da Sexualidade posteriores ao episódio no Death Valley. O ácido, sem qualquer tipo de metáfora, oferece-nos isto: a “experiência-limite”, para usar a expressão de Foucault, a difícil passagem pela destituição subjetiva (ou dessubjetivação), sem a qual não podemos realmente pretender aceder às condições sob as quais se desenrolam as nossas experiências, quotidianas e não quotidianas, e agir sobre elas para as modificar. A kind of metaphysical hack, acrescenta Fisher. Destratificar o humano, refazer o seu Sistema Nervoso Central, não é uma operação simples. Como escreve Land num dos seus textos sobre Deleuze dos anos 90: “Deus sive natura não é uma identidade mas uma disjunção inclusiva; Spinoza o judeu assimilado ou Spinoza o psicótico explosivo, desconstrução ou esquizoanálise”. No limite, uma questão de ritmo.

FF: Fisher lecionava na Goldsmiths um curso em torno da sua pesquisa para o livro Acid Communism, cujas ideias centrais testava em discussão com a turma, quando termina a sua vida, e a sua contribuição para o pensamento. Tanto no texto (introdução a uma obra nunca escrita) como na transcrição das suas aulas (publicada postumamente em Post-Capitalist Desire), parece  deparar-se com a ideia de que, sabendo nós o que correu mal, importaria agora relembrar – a par de activar e experimentar – o que se fez bem. Em Post-Capitalist Desire, sente-se uma angústia silenciosa na busca por soluções, típica de uma sala de aula em que um grupo de jovens discute como quer salvar o mundo, ou talvez seja o espanto de ver essa possibilidade apresentada como algo realizável. O problema, o ponto de interrogação Depois do Futuro, passa por sabermos o que queremos ou por não sabermos o que falta fazer?

N.L: Esse espanto e essa angústia que a tua (excelente) descrição do ambiente da sala de aula em Post-Capitalist Desire conseguiu captar fez-me de alguma forma pensar naquela outra sala de aula que Fisher descreve longamente em Realismo Capitalista, dos tempos em que era professor nos programas de Further Education. Ou não serão essas precisamente as tonalidades afectivas (ou emoções) a que o aluno adolescente das análises de Fisher em Realismo Capitalista, dominado pelo desinteresse e entregue a uma certa “hedonia depressiva”, não consegue aceder (por muito que tenha a sensação de que “algo está em falta”)? É por isso que a minha resposta à tua pergunta no final seria que ambas as coisas – saber “o que queremos”, saber “o que falta fazer” – são necessárias e coimplicam-se, como os dois momentos de um mesmo processo: não chegaremos a descobrir tudo o que o mundo pode conter de espanto e de “possibilidade” se não consentirmos até certo ponto (como Fisher parece sugerir no texto de Realismo Capitalista) em ir para lá do princípio do prazer, com tudo o que isso acarreta de busca angustiada por soluções para problemas por vezes de difícil resolução (“a indigestibilidade, a dificuldade, é ela mesma Nietzsche”, escrevia Fisher numa passagem memorável). Mas é também aqui que tudo verdadeiramente se complica, uma vez que isto também funciona (ou não funciona) em sentido contrário: isto é, porque nos havemos de esforçar quando sabemos desde o início que o caminho – isto é, o futuro – estará sempre fechado, bloqueado, obstruído? De que adianta “sabermos o que queremos” quando também sabemos perfeitamente que “nada podemos fazer a esse respeito”?

Em Realismo Capitalista, Fisher distinguia este tipo de “impotência reflexiva” que encontrava nos estudantes ingleses quer da mera apatia quer do cinismo. Porque onde a apatia é indiferente, o cinismo representa ainda uma espécie de saída. Na impotência reflexiva, por outro lado, todos os caminhos estão bloqueados e isso não é indiferente: “They know things are bad, but more than that, they know they can’t do anything about it”. Aquilo a que Fisher também chamava o “niilismo interpassivo do Capital”. Mas falta perguntar: como é que Fisher dava resposta a estas questões, se é que alguma vez deu? No que toca a Acid Communism – unfinished introduction (ou às aulas de Post-Capitalist Desire), a minha sugestão seria que a questão tem menos a ver com a diferença entre “o que se fez bem” e “o que correu mal” do que com o reatar de relações com a intensidade de um tempo em que essa diferença não parecia importar tanto como hoje. Não estou a pensar necessariamente (ou exclusivamente) em Nietzsche, também Marx não concebeu nunca a crítica do capitalismo como uma obrigação moral. E para continuar a falar de alguns dos “fantasmas” que nos habitam, há um terceiro que está ainda mais morto e enterrado do que estes dois: de Freud (ou da psicanálise), hoje, e parecendo que não, não restam nem as cinzas. É só por isso que convocar, como faz Fisher no texto de que falamos, o espectro de Marcuse – de um mundo que podia ser livre – soa tão absolutamente estranho ao leitor que insiste em procurar respostas onde não as pode encontrar (porque sabe perfeitamente que “nada podemos fazer a esse respeito”). Mas existe mais, para lá do princípio do prazer, do que um regresso infeliz às velhas praxis e disciplinas de outros tempos: não tem que ser o Capital, com a sua “engenharia libidinal”, o único a não ter esquecido esta lição.

 

 

Elenco

Perguntas: Filipe Felizardo

Respostas: Nuno Leão

Direção de atores: Ana Bigotte Vieira

 

“Se os próprios fundamentos da nossa experiência”, diz Mark Fisher, “como o sentido do espaço e do tempo, podem ser alterados, não quererá isso dizer que as categorias pelas quais vivemos são elas próprias plásticas, mutáveis?” É em torno da noção de consciência que o projeto de Acid Communism, livro deixado inacabado por Fisher e de que apenas se conhece a introdução, se discute em toda a sua amplitude – desde a forma como a “experiência psicadélica” dos anos 1960 foi capaz de se generalizar através de uma série de mediações culturais, do rock à televisão, até aos grupos de “consciencialização” feministas dos anos 1970, passando pelo desenvolvimento de uma renovada “consciência de classe” sensível a questões raciais, de género, qualidade de vida, etc., e aberta às influências do campo cultural e estético.

Invocar “o espectro de um mundo que podia ser livre”, o espectro da contracultura (e de Marcuse) funciona sem dúvida como um convite a inverter alguns dos lugares-comuns da esquerda cristalizados ao longo dos últimos vinte anos. O psicadélico – o ácido em “acid communism” – está intrinsecamente ligado à questão da consciência, como a uma realidade viva (e visível) que se expande ou se contrai, diminui ou aumenta. Nesta terceira sessão do ciclo sobre Mark Fisher, coordenada pelo investigador e tradutor Nuno Leão, a leitura do texto Acid Communism servirá de mote para uma conversa em torno das ideias de experiência, consciência, contracultura, trabalho e desejo no capitalismo tardio.

 

“O conceito de acid communism é uma provocação e uma promessa. Uma espécie de piada, mas com um propósito muito sério. Aponta para algo que, a dada altura, parecia inevitável, mas que hoje diríamos impossível: a convergência entre consciência de classe, os grupos de consciencialização feministas e consciência psicadélica, a fusão dos novos movimentos sociais com um projeto comunista, uma esteticização sem precedentes da vida quotidiana.”

Mark Fisher

 

 

Cliquem aqui para ler Acid Communism no original

Cliquem aqui para ler “A social and psychic revolution of almost inconceivable magnitude”: Popular Culture’s Interrupted Accelerationist Dreams

 

 

Contrariamente ao que foi anunciado, Mariana Pinho não poderá participar nesta sessão.

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